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00:00Olá, bem-vindos e bem-vindas ao Ponto de Vista.
00:11O assunto do programa de hoje, infelizmente, é bem pesado.
00:16O avanço dos crimes de feminicídio em Pernambuco e no Brasil.
00:20Para falar sobre o assunto, nosso convidado é o jornalista Cléster Cavalcante,
00:25que recentemente lançou um livro que trata do tema.
00:29Cléster, seja muito bem-vindo e obrigado por atender o nosso convite.
00:33Agradeço sempre pelo convite, é bom estar aqui com vocês, é um prazer.
00:36Vamos começar, Cléster, com os números do Brasil.
00:40A gente sabe que no Brasil mata-se com muita facilidade e muitas vezes as vítimas são as mulheres.
00:47E o pior, em muitos casos, os assassinos são os companheiros ou ex-companheiros dessas mulheres.
00:54A gente não pode normalizar isso, né?
00:56É, Fernando, assim, a questão é muito grave, né?
01:00Como você falou, no Brasil os dados são de que cerca de 1.500 mulheres morrem todos os anos
01:06simplesmente por serem mulheres no Brasil, né?
01:09Isso dá mais ou menos quatro casos de feminicídio por dia.
01:14Ou seja, a cada seis horas, uma mulher é morta no Brasil por ser mulher.
01:18E em 80% desses casos, o assassino é o companheiro ou ex-companheiro da vítima.
01:26Então, assim, são números muito alarmantes.
01:28E lembrando sempre, eu falo sempre o seguinte, que esses números são números oficiais, né?
01:31Os dados reais certamente são muito piores.
01:33E, de fato, a gente não pode aceitar viver num país em que 1.500 mulheres sejam assassinadas todos os anos
01:44só por ser mulher, né?
01:45A gente precisa tomar atitudes para começar a combater essa questão de verdade.
01:50O seu livro, eu estou com ele aqui, matou uma, matou todas.
01:55Foi lançado recentemente, foi lançado primeiro aqui, né?
01:58Na Bienal de Pernambuco.
01:58Em Pernambuco, na Bienal do Livro, depois em Brasília, São Paulo.
02:03Como é que tem sido a receptividade a esse livro?
02:06Tem sido muito boa.
02:08Eu estou muito feliz porque eu estou recebendo um apoio muito grande das mulheres, né?
02:13Porque eu, um homem hétero, falar sobre assuntos não é normal.
02:17Tanto é que é a primeira vez, Fernando, no Brasil, que um livro sobre violência de gênero é escrito por um homem.
02:24Todos os livros que tratam desse assunto no Brasil, até hoje, foram feitos por mulheres.
02:30E nas palestras que eu faço, nas entrevistas, nos encontros, nos lançamentos,
02:36as mulheres todas vêm dar muito apoio, sabe assim?
02:39E dizendo sempre que é importante um homem falar sobre isso,
02:42porque um homem falando pode ser que outros homens ouçam, né?
02:45E como quem mata a mulher somos nós, os homens, né?
02:48Em 97% dos casos de discriminação no Brasil, o assassino é um homem.
02:53Então, o homem não dá muito ouvido à mulher, né?
02:58Então, o que as mulheres falam, e que eu sinto também isso nos eventos,
03:03é que um homem falando, todos os homens dão ouvido, né?
03:06Como se...
03:07É porque o ouvido machista, ele é treinado para não ouvir a mulher, né?
03:11E aí, a esperança de que agora um homem falando, um homem tratando do assunto no livro,
03:16possa chegar nos homens, né?
03:18E começar a mudar essa realidade.
03:20O que foi que levou você, Cléster, a se interessar por esse tema especificamente?
03:27É, como você sabe, eu sou jornalista como você,
03:29minha carreira inteira foi em grandes veículos de imprensa no Brasil,
03:32e a carreira de escritor surgiu sem muita pretensão, né?
03:36Eu não pretendia virar escritor, né?
03:38A coisa foi acontecendo, e hoje, o Matou, Matou Todas, é meu sexto livro, né?
03:43Eu tenho livro lançado já em mais de 20 países, em 8 idiomas,
03:49e sempre no meu trabalho de escritor, eu busco temas atuais, né?
03:53Até para ser jornalista, eu sempre estou vendo tudo que acontece no Brasil, no mundo,
03:58e eu procuro temas que eu acho, né?
04:02Que eu considero relevantes, fortes,
04:05e que eu sinta que eu possa colaborar de alguma forma, né?
04:08E aí, eu comecei a ver, em 2017, 2018,
04:13muitas matérias de feminicídio no Brasil, né?
04:17Aí comecei a ler mais, a procurar mais informações sobre o assunto,
04:21e fui vendo que a coisa realmente é absurda, né, cara?
04:24Assim, são números muito alarmantes,
04:27e eu pesquisei se tinha algum livro, né?
04:31Que já tivesse sido publicado num formato como é o que eu queria fazer,
04:35porque meu livro, ele não traz só relatos de vítimas, né?
04:40Entrevistei familiares, né? Busquei documentos,
04:43eu li quase 20 mil páginas de processos judiciais em aquelas policiais
04:47para fazer esse livro, entrevistei as famílias todas das vítimas,
04:51mas eu também fiz uma coisa que eu achei bacana,
04:53que foi valorizar e dar espaço a pessoas e instituições que combatem o problema, né?
05:00Então, com essa ideia em mente, eu busquei algum livro, né,
05:04que já tivesse essa pegada, esse conteúdo, e não tinha no Brasil, né?
05:08Se tivesse, eu não teria feito, né?
05:10Aí eu me propus a fazer esse trabalho, que eu achava que seria importante, né?
05:15E esse título, Flester, matou uma, matou todas, de onde você tirou esse título?
05:20Cara, quando eu tenho ideias de livros, é muito interessante isso,
05:25quando eu penso num projeto de um livro, o título já vem muito rápido na minha mente,
05:29muito facilmente, esse não, esse eu não tinha,
05:32eu pensava em vários títulos e não conseguia ficar satisfeito com as ideias que eu tinha,
05:38fui buscando referências, e aí eu lembrei daquele slogan,
05:42mexeu com uma, mexeu com todas, né?
05:44Porque é aquilo que a mulher sente, né?
05:46Quando uma mulher é assediada, é agredida,
05:50todas as mulheres se sentem assim.
05:52E a mesma coisa vale para o feminicídio,
05:55quando uma mulher é assassinada simplesmente por ser mulher,
06:00eu percebi nas entrevistas, nas conversas,
06:02que todas as mulheres se sentem incluídas,
06:04porque a mulher sabe que, não é por ser de tal classe social,
06:09de tal situação, que ela está isenta, né?
06:12O feminicídio, a gente pode dizer que é um crime muito, digamos, democrático, né?
06:17Afeta todas as mulheres.
06:18Afeta todas as mulheres de todas as classes sociais.
06:21E todas as regiões do Brasil.
06:22No livro eu tive, um dos critérios que eu usei para escolher as histórias que eu ia colocar no livro,
06:27é que eu queria que tivesse histórias de todas as regiões do Brasil.
06:30Então, tem história do norte, do nordeste, do sul, do sudeste e centro-oeste.
06:36A gente vai falar um pouquinho sobre esses casos.
06:39Agora, você falou que, pesquisando, você viu que todos os livros
06:44sobre questão de gênero, geralmente, eram escritos por mulheres.
06:47Houve algum estranhamento quando as pessoas começaram a ver que esse livro
06:52matou uma, matou todas, falando sobre feminicídio.
06:56Era escrito por um homem?
06:57Até hoje, não.
07:00Eu, quando decidi fazer o livro, eu já me preparei.
07:03Falei, em algum momento, vamos dizer que o tal famoso lugar de fala, né?
07:07Mas, assim, eu sou jornalista, né?
07:09Então, eu escrevo sempre sobre os outros, sempre sobre mim.
07:11Então, eu não tenho lugar de fala em nada do que eu faço, nada do que eu escrevo.
07:15Mas, o que está acontecendo, Fernando, é o oposto, cara.
07:19Todos os lugares que eu estou indo fazer palestras, lançar o livro, fazer eventos,
07:23eu estou sentindo um acolhimento muito bacana das mulheres, sabe?
07:27Dando muito apoio ao trabalho, com esse pensamento de que,
07:30ah, que bom que, finalmente, um homem, né?
07:33Eu lancei o livro, fiz uma palestra aqui no Recife,
07:36na Secretaria Estadual da Mulher,
07:40e teve uma secretária municipal, não lembro agora de que cidade,
07:44que ela fez um comentário, ela levantou, né, para fazer uma pergunta,
07:47e ela fez um comentário, ela falou,
07:49ah, que bom que eu vivi para ver um homem se colocar do nosso lado nessa causa, entendeu?
07:56Então, eu estou sentindo muito isso, muito apoio das mulheres em relação ao trabalho.
08:01Você se concentrou, né?
08:02A gente estava falando até antes de vir para cá, para o estúdio,
08:05você se concentrou em seis casos, né?
08:08Em diferentes regiões do país, como você acabou de dizer.
08:12Qual foi a sua intenção quando tentou fazer essa variação de locais, né?
08:18E a escolha das vítimas também.
08:21Qual foi, teve algum...
08:23Você queria mostrar que esse realmente é um problema nacional,
08:27é um problema que atinge o país todo?
08:30Isso, eu usei três critérios, né, para escolher as histórias que eu ia colocar no livro.
08:34Um deles era esse, né, que eu queria casos em toda a região do Brasil.
08:39Um outro era de que as famílias das vítimas não só concordassem que eu colocasse a história no livro,
08:48mas também se colocassem à disposição para colaborar, né?
08:51Com entrevistas, fornecendo fotos, vídeos, porque esse trabalho é muito importante.
08:56E o outro critério era de que fossem casos já julgados, né, já concluídos, né?
09:03Porque aí eu posso escrever como eu escrevi no livro, tratando o cara de assassino.
09:09Não preciso colocar aquilo que a gente usa muito em jornalismo, né?
09:12Isso teria feito, o suposto...
09:14Não, aqui não.
09:14Aqui o cara, segundo a justiça, o cara matou.
09:16Então eu posso dizer, ó, ele matou, foi condenado, entendeu?
09:20Então tinha esses três critérios.
09:22E a questão da região é porque, como você falou, eu queria mostrar aqui o problema nacional, né?
09:27Que assim, no livro tem, além de fotos das mulheres, das famílias e tudo mais,
09:33também tem uma parte grande de gráficos.
09:36Então tem, por exemplo, o mapa do Brasil, com a quantidade de mortes por feminicídio em cada estado, entendeu?
09:40Para deixar claro que, realmente, é uma questão nacional, né?
09:44Não tem nenhum estado do Brasil que pode se gabar e dizer, ó, aqui a gente não tem feminicídio, entendeu?
09:49É uma questão muito, muito profunda.
09:50Você usou os números de 2020, até 2024?
09:54É.
09:54Ou de 2024?
09:55Eu usei de 2024, né?
09:57São os dados mais recentes, né?
09:58Para esse gráfico do Brasil.
10:00Mas tem outro gráfico que mostra, desde que a lei do feminicídio foi instituída em 2015, fez agora 10 anos,
10:06tem um gráfico que mostra o aumento de feminicídios de 2015 até o ano passado.
10:12Vamos falar do caso aqui de Pernambuco, né?
10:14Você, a história que você conta é da Mirella, que foi assassinada, eu acho que em 2017?
10:202017.
10:202017.
10:22E teria sido assassinada, teria sido não, foi assassinada por um vizinho, né?
10:28Isso foi um caso que surpreendeu todo mundo, chocou todo mundo, né?
10:34O que é que você conta sobre essa história da Mirella?
10:37Esse caso da Mirella, Fernanda, eu queria muito colocar no livro, por vários motivos, né?
10:43O mesmo caso do Recife, né?
10:45Eu sou daqui, eu moro fora há muito tempo, mas sou daqui do Recife.
10:49E é um caso que ele difere muito das estatísticas, né?
10:53Porque em 80% dos casos, o assassino é companheiro ou ex-companheiro.
10:59Em 11%, o assassino é algum parente.
11:02Ou seja, em 91%, o assassino da mulher é alguém muito próximo a ela, que tinha uma relação familiar, de afeto, coisa assim.
11:12A gente tem algumas fotos, né?
11:13Vamos soltar enquanto o Cléster está falando desse caso aí, a Mirella, aí a foto dela.
11:20O caso da Mirella, o cara que a matou era vizinho, não era amigo, não era paquera, não era nada.
11:28O cara nunca tinha sequer conversado com ela, entendeu?
11:35E aí um dia, às 7 horas da manhã, o cara foi na porta dela.
11:39Eu moro num edifício, eu moro no apartamento.
11:41Se alguém vai na minha porta, vou abrir, vou achar que é um zerador, que é um vizinho, né?
11:46E de fato era um vizinho.
11:48Às 7 horas da manhã, o cara já entrou tentando estuprá-la.
11:52Ela era uma moça atlética, fazia vários esportes.
11:54Ela reagiu, eles brigaram e o cara matou ela.
11:57O cara pegou uma faca e cortou o pescoço dela.
11:59A foto da Mirella morta é muito pesada, eu não coloquei num livro a foto.
12:03Ele admitiu o Cléster em algum momento que foi ele que matou?
12:06Qual a versão dele?
12:08Isso aí é outra coisa que é incomum dos assassinos, né?
12:11Eles nunca admitem, né?
12:13Então o caso da Mirella é muito, muito absurdo,
12:17porque a polícia, como eu falei pra você, eu dei muito espaço a pessoas, instituições que combatem o problema.
12:26Então a polícia científica aqui de Pernambuco fez um trabalho fantástico no caso da Mirella.
12:32Os peritos chegaram a encontrar pele do assassino embaixo da unha da Mirella.
12:39Embaixo da unha.
12:40Exatamente, porque teve uma briga durante o crime.
12:45Ele matou a Mirella, ele subiu em cima do corpo dela, né?
12:48Ela deitada no chão, ele montou nela, tentando estuprá-la, ela reagiu, brigou e ela arranhou as pernas dele.
12:54Ele, quando foi preso, ele estava com as duas coxas arranhadas.
12:58E o Diego, o nome do perito que fez esse trabalho,
13:02eles encontraram pele do assassino embaixo da unha da Mirella.
13:06Assim, pele é a prova mais incontestável do que existe, entendeu?
13:11Então, assim, está provado cientificamente que a Mirella tinha pele do cara embaixo da unha dela.
13:16Como é que ela teria?
13:17Não tem outro motivo, né?
13:19O cara matou e na briga estava lá.
13:22Eu não sei se você sabe.
13:23E esse cara, mesmo assim, ele nega.
13:24Ele falou que não foi ele.
13:25No julgamento, esse cara teve a audácia de chegar pra mãe da Mirella,
13:31pra D. Sueli, que eu entrevistei várias vezes pra fazer o livro,
13:34e falou pra mãe da Mirella assim,
13:36espere que a senhora encontre a pessoa que matou sua filha.
13:39É, eu não sei se você sabe se ele continua preso,
13:42porque o crime já tem oito anos, né?
13:44Foi em 2017, ele continua preso.
13:47Ele está preso ainda.
13:47Pelo menos isso, né, Cléster?
13:49Cléster, ao longo da pesquisa, né, sobre esse assunto,
13:53teve alguma coisa que te chamou mais atenção?
13:56Alguma coisa assim que, depois que você começou a pesquisar,
13:59você disse, cara, esse dado eu não sabia.
14:03Alguma coisa que te surpreendeu, chamou atenção?
14:05Fernando, assim, é muito pesado, porque entrevistando as famílias,
14:10os pais, né, você sente a dor das pessoas, né?
14:13É uma dor que não vai passar nunca, né?
14:16Tem a questão da violência, da truculência, né?
14:19Porque ficou muito claro pra mim que esses caras que matam as mulheres,
14:25eles não querem só matar, eles querem trucidar, sabe assim?
14:28É um ódio, é a misoginia, né?
14:30É ódio por ser mulher, né?
14:32Aquele episódio que a gente viu há pouco tempo,
14:34aquele cara de Natal,
14:35deu 61 murros na namorada, no elevador,
14:38cara, 61 murros, cara.
14:40Ele consegue conceber o ódio dessa pessoa,
14:43o cara fica cansado de desmurrar todos os murros no rosto da mulher.
14:47Por quê?
14:47Porque ele quer desfigurar a mulher, ele quer deixar a mulher feia,
14:50ele quer tirar da mulher a beleza,
14:52pra que nenhum outro homem queira aquela mulher, entendeu?
14:54Então as coisas da violência é assustador, assim,
14:58a truculência com a qual esses caras tratam as mulheres.
15:02Mas sobre dados, tem um dado que pra mim é muito triste, né?
15:05Além desse dado geral que a gente tem da quantidade de feminicídios no Brasil,
15:10tem um dado que eu acho muito, muito triste,
15:12que é o de que em 64,3% dos feminicídios no Brasil,
15:18o crime acontece dentro da casa da vítima.
15:21A gente tem aquela ideia de que o lar, né?
15:23É um lugar de comunhão, de amor, de cuidado, de segurança.
15:25Todo mundo, em princípio, deveria se sentir seguro, né?
15:28Exatamente.
15:28Para a mulher, o lar é o ambiente mais perigoso.
15:33A mulher está com mais risco de ser assassinada dentro de casa
15:36do que na rua, do que no trabalho, do que num bar.
15:41Isso é muito triste, cara.
15:42E a mulher, lógico, sabe disso.
15:45Você saber que uma pessoa se sente insegura dentro da própria casa
15:50é muito triste, cara.
15:51Muito triste.
15:51Ok, Cléster, a gente vai fazer um rápido intervalo.
15:55Você que está acompanhando com a gente, não saia daí.
15:58A gente volta já, já.
15:59O Ponto de Vista está de volta.
16:14Hoje estamos falando de um tema muito sério,
16:17que é o feminicídio,
16:19que infelizmente acontece em todo o país.
16:21Eu estou recebendo aqui o jornalista e escritor Cléster Cavalcante.
16:25Cléster, a gente vive numa sociedade patriarcal e machista, né?
16:31E muitas vezes a gente vê os homens achando,
16:35sentindo a mulher quase como uma propriedade deles, né?
16:37Essa característica contribui para a gente ser um país
16:41com tantos feminicídios assim?
16:43Com certeza.
16:44Porque, como você falou, o homem, a gente,
16:48homem, né?
16:48A gente é educado por ser machista.
16:51E as mulheres também, né?
16:52Infelizmente, desde pequeno, né?
16:54Sim, sim, exatamente.
16:55Então, é uma luta constante, né?
16:57Então, se o cara se sente no poder de mandar a mulher fazer isso ou fazer aquilo,
17:05né?
17:05Então, ele vai se sentir no poder de agredi-la,
17:07caso ela não obedeça, né?
17:09Então, por que é que o cara pode sair do trabalho,
17:12ir no futebol,
17:13viver com os amigos,
17:14e a mulher tem que sair do trabalho e ir para casa?
17:17Por que é que a mulher não pode sair do trabalho e viver com as amigas?
17:19Por que é que o homem...
17:22Tem um negócio que, para mim, foi muito claro, Fernando,
17:24nessa...
17:25Na produção desse livro,
17:27é de que tem coisas que a gente não pensa.
17:30A gente, como homem,
17:31a gente nunca vai saber o que é ser mulher.
17:34Mas tem situações do dia a dia
17:35que, para a gente,
17:38são situações corriqueiras,
17:40comuns, triviais,
17:42e que, para a mulher, é um desafio.
17:44Por exemplo, uma coisa mais básica do mundo do dia,
17:47se chama Uber.
17:47A gente, quando chama o Uber,
17:50a gente não está preocupado se o motorista vai ser homem,
17:53se o motorista vai tentar alguma coisa,
17:55vai fazer uma graça,
17:56vai tentar passar a mão na sua perna por trás do banco.
17:58A mulher tem esse receio.
18:00A gente, quando entra no metrô, no ônibus,
18:03a gente não tem medo de ser encoxado,
18:04de alguém passar a mão na gente.
18:06A mulher tem esse receio.
18:08A mulher, para sair de casa,
18:10às vezes, ela pensa que roupa vai usar
18:12para não ver gracinha na rua, entendeu?
18:14Então, essas coisas,
18:15se a mulher é promovida no trabalho,
18:17ela corre o risco de dizer,
18:20não, foi promovida porque ficou com o chefe.
18:22A gente não tem esse risco.
18:24Entendeu?
18:24Então, assim, tudo, cara,
18:25é uma coisa que, para mim, ficou muito clara nesse livro.
18:28Tudo para a mulher é muito mais complicado,
18:30sofrido, difícil do que é para a gente.
18:33E isso é o reflexo da sociedade machista que a gente vive, né?
18:36Uma sociedade em que muitos homens ainda se sentem
18:38no poder de agredir, até de matar a mulher,
18:41para ter o domínio sobre ela, né?
18:42Pela estatística que você deu no primeiro bloco da nossa conversa,
18:47uma mulher é assassinada no país a cada seis horas por feminicídio, né?
18:52Não qualquer assassinato.
18:54Por feminicídio.
18:56Quais são os principais fatores que levam a números tão impressionantes?
19:00Ah, Fernando, essa pergunta só tem uma resposta, cara, é machismo.
19:05É machismo porque...
19:06Machismo do brasileiro.
19:07Exatamente, porque a lei do feminicídio que foi criada em 2015
19:14é uma lei boa, ficou mais rigorosa ainda.
19:19Ano passado, no final do ano passado,
19:21um projeto da senadora Margareth Buzetti
19:23tornou a punição contra o feminicídio mais grave do que já era.
19:29Hoje, o feminicídio é o crime que tem a maior pena de prisão,
19:34pode chegar a 40 anos.
19:36As instituições, os órgãos públicos, ONGs,
19:40têm se esforçado para combater o problema
19:42e continuam aumentando, né?
19:46Porque o machismo é isso, né?
19:48O machismo diz para o homem que ele pode agredir,
19:51que ele pode mandar.
19:52E muitas mulheres ainda entendem isso.
19:54Tem um dado, saiu há pouco tempo,
19:56não vou lembrar agora porque é uma pesquisa recente
20:00que saiu da OMS, da Organização Mundial da Saúde,
20:05de que, se não me engano, acho que é 33% das mulheres
20:10que passam por quadros de violência não reconhecem isso.
20:14para saber como o machismo trabalha.
20:17Sequer percebem.
20:18A própria mulher que está passando por cenário de violência,
20:22ela não percebe ou, às vezes, não admite o que está passando.
20:26Por quê?
20:26Porque o machismo ensinou aquela mulher
20:28de que o homem pode fazer aquilo,
20:31de que o homem pode, por exemplo, estipular que hora ela vai chegar em casa, sabe?
20:35De que o homem pode obrigá-la a mostrar o Instagram dela, sabe?
20:39Para ele ver com quem ela está falando.
20:40Eu estava em João Pessoa fazendo um evento esse fim de semana
20:45e eu vi um relato bem interessante
20:48de uma mulher achando bonito
20:52que o marido dela tinha colocado um rastreador no celular dela
20:55para saber onde ela estava.
20:57E a mulher vendo aquilo como proteção.
20:59Não é, né?
21:00Não é controle, né?
21:02Cléster, para fazer o livro,
21:04você escolheu esses casos,
21:06esses seis casos aí pelo Brasil,
21:08e para fazer cada um destrinchar os casos,
21:14você deve ter precisado se aproximar das famílias, né?
21:18Como foi a receptividade das famílias
21:20a essa tua intenção de trazer de novo o caso à tona, né?
21:26Discutir de novo um caso que, geralmente,
21:29como você mesmo falou há pouco,
21:30as famílias sofrem muito
21:32e muitas ainda seguem sofrendo a vida toda, né?
21:36Como foi a participação das famílias na feitura desse livro?
21:41Fernando, foi uma coisa assim, foi muito bacana, sabe?
21:43Realmente eu agradeço um livro, inclusive, né?
21:47Essas famílias todas, né?
21:49Porque não é simples, né, cara?
21:51Você falar de um trauma tão forte para a família, né?
21:54E, por exemplo, o caso da Mirela aqui do Recife,
21:58os pais da Mirela, do Anseli e do Seu Wilson,
22:01cara, são pessoas muito boas, sabe?
22:03E que abriram o coração para mim de um jeito,
22:05todos os familiares, né,
22:07que eu entrevistava,
22:08se abriram muito comigo, né?
22:11E várias vezes, várias vezes eu estava entrevistando um pai ou uma mãe
22:17e durante a entrevista eles choravam.
22:20E eu tinha de interromper a entrevista,
22:21houve até a situação de eu ter de interromper e começar só outro dia,
22:24retomar só outro dia.
22:26Só que, por outro lado,
22:28essas famílias todas,
22:30elas entenderam a força do trabalho,
22:33a intenção do trabalho
22:34e perceberam que valeria a pena
22:38passar por aquela dor, né,
22:40de me contarem...
22:42Porque, assim, você vai ler o livro,
22:44eu escrevo detalhes mínimos de situações,
22:47não só de crime, né?
22:48Porque isso é uma coisa legal de falar,
22:50o livro não é uma coletânea de crimes.
22:53O livro tem situações leves, bonitas,
22:56eu falo da infância das mulheres,
22:57da relação dessas mulheres que morreram
22:59com família, com trabalho,
23:01então tem coisas bonitas no livro, né?
23:02Além do que eu falei também,
23:03do trabalho de quem atua contra o feminicídio.
23:06Então, é uma parte do livro que não é difícil de ler,
23:10não é duro para ler.
23:11Você vê como trabalhou, por exemplo,
23:12a polícia científica aqui do Recife
23:14para pegar o caso da Mirella,
23:16como trabalhou um promotor do Mato Grosso
23:19que fez um trabalho fantástico
23:20para prender um noivo
23:21que matou a própria noiva grávida dele de quatro meses.
23:24Então, tem muito isso no livro.
23:27Mas, é claro, né,
23:28a parte humana é a que mais dói.
23:32E essas famílias, assim,
23:34abriu o coração, a alma para mim
23:36com tanta generosidade, sabe?
23:37Foi muito bacana.
23:38A dona Sueli, a mãe da Mirella,
23:40aqui do Recife, né,
23:41quando eu lancei o livro aqui
23:42na Bienal de Pernambuco,
23:44ela foi com o marido,
23:46com o seu Wilson,
23:47com a família,
23:48e quando ela chegou, né,
23:49eu já estava no meio da palestra,
23:52quando eu dei lá,
23:53eu a chamei para ir no palco, né,
23:54para dar um depoimento.
23:55E foi muito emocionante.
23:56Foi muito emocionante.
23:57E o público sente isso, né,
24:00sente a força desses relatos, né?
24:03Você, para fazer o livro,
24:06você deve ter meio que entendido
24:10ou estudado também um pouco
24:12dos assassinos, né,
24:13dos seis casos que você pesquisou.
24:16Alguma coisa em comum entre eles?
24:18Você percebeu alguma coisa em comum
24:21entre esses assassinos,
24:22dos seis casos que você traz no livro?
24:25É, de novo, aquilo que a gente falou,
24:26né, o machismo, né?
24:27É a sensação de posse.
24:29Aquele machismo extremo, né?
24:30Porque, ó,
24:31o caso da Medela,
24:34o cara não tinha relação alguma com ela.
24:37Nunca tinha ficado com ela,
24:38não era aquilo.
24:38Ele era um vizinho, né?
24:40Era um cara que achava que,
24:41por ser homem,
24:42podia fazer sexo com aquela mulher
24:44quando ele bem entendesse,
24:45mesmo sem conhecer a mulher.
24:47Invadiu a casa dela,
24:47tentou estuprar ela,
24:48ela reagiu e matou ela.
24:51Esse caso que eu falei do Mato Grosso,
24:53o cara é médico.
24:56E esse caso é absurdo,
24:58Fernando,
24:59porque, assim,
25:00o cara usou os conhecimentos
25:02de medicina dele
25:02para matar a própria noiva
25:04sem deixar nenhuma prova, assim,
25:07física visível, entendeu?
25:08Porque ela estava querendo separar dele,
25:13ele não aceitou,
25:14matou a moça.
25:15O caso do Paraná também,
25:17que é um caso muito emblemático,
25:19conhecido no Brasil todo.
25:21Cara,
25:22nesse caso tem um detalhe
25:24que também tem a ver com
25:25a violência contra a mulher, né?
25:27Que é a mulher de uma beleza, assim,
25:31descomunal,
25:31uma moça linda,
25:32Tatiane,
25:33e o cara fez um assédio mental
25:37tão pesado nela
25:38que ela passou a se achar feia.
25:41No livro tem um diálogo dela com uma amiga,
25:44não sei se é amiga ou se é a prima dela,
25:46que fala para ela assim,
25:48Tati,
25:48te olha no espelho,
25:49você é uma mulher linda,
25:50só que o cara
25:50era um assédio mental,
25:53pessoal, humano,
25:54tão pesado
25:55que ela estava começando a se convencer
25:56de que a gente não era uma mulher bonita.
25:58e aí nesse quadro de violência,
26:00agressão,
26:03ela quer separar do cara,
26:05tentou separar,
26:05o cara matou a mulher.
26:07Então,
26:08o ponto em comum
26:10entre todos os casos
26:11é o machismo,
26:12o machismo que faz os caras
26:14acreditarem que
26:14tem domínio sobre a mulher
26:16e que se a mulher
26:17eles veem ela como posse mesmo.
26:19se ela quiser fazer algo,
26:20tomar uma decisão
26:21com a qual ele não concorde,
26:23ele agride e mata a mulher.
26:25Você falou aí,
26:26lembrou mais
26:26um pouco antes,
26:28que a lei
26:28que tipificou o feminicídio
26:30no Brasil
26:30é de 2015,
26:32e mesmo assim
26:33ela é uma lei
26:35boa,
26:37considerada uma lei boa,
26:39e mesmo assim
26:39a gente continua tendo
26:41os casos de feminicídio
26:42cada vez
26:43em maior número,
26:46e olha que
26:46são só as estatísticas,
26:48a gente não tem
26:49os números reais.
26:52Isso,
26:53a lei é boa,
26:54mas
26:55ela não é aplicada
26:56como deveria,
26:57o que é que está acontecendo
26:58que o Brasil,
26:59apesar de ter uma lei
27:00tão boa,
27:01os crimes de feminicídio
27:02continuam acontecendo
27:03em tão
27:04número,
27:05número tão alto?
27:06Fernando,
27:06a lei até tem sido aplicada,
27:08porque de anos para cá
27:09a sociedade toda
27:11está se mostrando muito,
27:12obviamente,
27:13contrária a esse tipo de coisa,
27:15ao feminicídio.
27:17Então,
27:17hoje é muito raro
27:18ter um caso de feminicídio
27:19que passa impune,
27:20é muito raro.
27:21a questão,
27:23a falha nossa,
27:24como sociedade,
27:27para mim,
27:28eu falo muito sobre isso,
27:28é muito claro
27:29que é
27:30no homem,
27:31porque
27:32em 97%
27:34dos casos
27:35de feminicídio
27:36no Brasil,
27:37o assassino
27:38é um homem.
27:39Então,
27:39somos nós homens
27:40que precisamos,
27:41eu tenho usado
27:42muito a expressão
27:43adestrados,
27:43sabe assim,
27:44porque a vida,
27:46a sociedade,
27:47adestraram a gente
27:49para ser machista,
27:51para ser agressivo
27:52com todo mundo.
27:53No Brasil,
27:54a gente está falando aqui
27:55fora antes da
27:56entrega de começar,
27:58a gente vê muitos casos
27:59no Brasil
27:59de gente no trânsito
28:00mata o outro
28:01porque fechou,
28:02ou passou na frente.
28:04Então,
28:04a gente tem essa violência
28:05impregnada
28:06no nosso DNA brasileiro.
28:09Se eu tivesse lido
28:10um livro desse
28:10há 30 anos,
28:12eu teria entendido
28:12muita coisa
28:13que eu só vim entender
28:14agora,
28:15já um adulto,
28:16maduro,
28:17fazendo esse trabalho.
28:18Então,
28:19eu acho que,
28:21eu falo muito isso,
28:22as mulheres comprem um livro,
28:23acho importante
28:24vocês lerem,
28:25claro,
28:25mas dê um livro
28:26para um homem,
28:27para um amigo,
28:28para o tio,
28:28para o irmão,
28:29para o pai,
28:30não necessariamente
28:31porque aquele homem
28:31agressou,
28:32mas porque aquele homem
28:33lendo o livro,
28:35ele vai comentar
28:35com outros homens
28:36e aí você dissemina
28:37a mensagem
28:39entre os homens
28:40porque o feminicídio
28:42só vai baixar no Brasil
28:43quando nós homens
28:45mudamos a nossa postura
28:47dentro das mulheres.
28:49Muito bem,
28:49Cléster,
28:50acabou o nosso tempo,
28:51aqui o livro de novo,
28:52matou uma,
28:53matou todas,
28:54você pode encontrar
28:55já nas livrarias
28:56e vale a pena ler
28:59e refletir
29:01sobre esse problema.
29:02Cléster,
29:03muito obrigado
29:04pela entrevista.
29:05Obrigado a você,
29:05obrigado de verdade.
29:07E a você que acompanhou
29:08até aqui,
29:09obrigado também,
29:10a gente volta
29:10na semana que vem.
29:12e aí
29:17e aí
29:18e aí
29:19e aí
29:20e aí