- 15/05/2025
05-Os Sambaquis
Com Paulo DeBlaisis
Vistos de longe, eles não passam de grandes montes de terra e conchas que irrompem aleatoriamente pela praia, sem qualquer desenho ou propósito evidente.
Mas para quem rastreia os caminhos dos primeiros povos da nossa terra, o sambaqui é uma obra engenhosa e de feitura colossal.
Compreender a arquitetura monumental que se esconde debaixo das conchas é a senha para conhecer esse povo desconhecido.
Com Paulo DeBlaisis
Vistos de longe, eles não passam de grandes montes de terra e conchas que irrompem aleatoriamente pela praia, sem qualquer desenho ou propósito evidente.
Mas para quem rastreia os caminhos dos primeiros povos da nossa terra, o sambaqui é uma obra engenhosa e de feitura colossal.
Compreender a arquitetura monumental que se esconde debaixo das conchas é a senha para conhecer esse povo desconhecido.
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AprendizadoTranscrição
00:30De longe, eles não chegam a impressionar.
00:48Não passam de grandes montes de terra e conchas que irrompem aleatoriamente pela praia, sem
00:53qualquer desenho ou propósito evidente.
00:56Mas os arqueólogos sabem, para quem rastreia os caminhos dos primeiros povos da nossa
01:01terra, o Sambaqui é uma obra engenhosa e de feitura colossal.
01:07Compreender a arquitetura monumental que se esconde debaixo da colina de conchas é a
01:12senha para redescobrir esse povo perdido e toda uma cultura que desapareceu com ele nas
01:18areias do tempo.
01:26Que é uma palavra que deriva do tupi, quer dizer, monte de concha em tupi.
01:44Os grupos tupi que vieram depois, os grupos de língua tupi que vieram depois, eles reconheciam
01:50o Sambaqui e deram esse nome, a gente herdou.
02:01Essa construção intencional, ela dá um outro ar, ela dá um outro status a esse
02:07homem, a esse índio do litoral.
02:09Ela dá o status de um índio que pensa a sua vida, pensa o seu ambiente, sabe o que
02:15quer dessa cultura, transforma continuamente essa cultura.
02:21Então o Sambaqui é o retrato dessa cultura litorânea, na pré-história.
02:28Ele demonstra então que esses homens enterravam seus mortos, eles construíam esses espaços
02:34cerimoniais, então nós temos Sambaqui cemitérios, eles construíam grandes monumentos que seriam
02:42os marcadores desse território.
02:46Às vezes está misturado com os morros de verdade, porque eles estão cobertos de floresta
02:51e não são muito perceptíveis assim a olho nu, mas que são formados basicamente de conchas
02:57e junto com outros materiais e outras coisas e que na verdade não são naturais.
03:04Os Sambaquis já estão aqui há muito tempo, há 4, 5 mil anos.
03:14Os Sambaquis mais antigos que a gente conhece tem cerca de 8 mil anos, Sambaquis litorâneos.
03:23Mas existe aquela velha questão de que sítios muito mais antigos podem ter existido e a
03:31gente simplesmente não tem acesso a eles, porque eles ficaram na plataforma continental
03:36quando o mar subiu, que pode ter coberto muitos dos vestígios das populações mais antigas
03:43que tiveram aí.
03:44A mesma coisa no litoral sul-americano, os locais mais interessantes de se morar eram
03:58as praias, onde você tem uma grande quantidade de peixe, mamíferos marinhos, moluscos, etc.
04:07As zonas de mongue e de enseadas são extremamente ricas, devem ter sido entre os locais mais
04:14densamente povoados na pré-história.
04:17A gente sabe que eles ocuparam um grande território, um grande período, e que você não pode
04:27pensar que isso, ao longo desse tempo, não houve diferenciações e que essa distância
04:33regional geográfica entre os grupos também não provocou diferenciações.
04:40Se você pegar sobre alguns aspectos, eles poderiam ser todos considerados a mesma coisa,
04:45mas se você foca em outros aspectos, você vê variações que indicam, bom, talvez não
04:51fosse uma única sociedade que tivesse espalhado por esse grande território.
04:57Eles foram muito destruídos, porque desde a época colonial eles foram usados para fazer
05:06cal, pavimentação, de cidades históricas, das primeiras cidades do litoral, então Salvador,
05:13Rio de Janeiro, Santos, São Vicente, Santos, aqui Laguna, cidade antiga.
05:20Então, esses sambaquis e principalmente os que estavam próximos das áreas urbanas
05:26foram sendo minerados para cal e para substrato, para estrada, calçamento e tal.
05:39Isso aqui era uma montanha muito alta, já brinquei eu, meus colegas, meus irmãos, daqui
05:46a gente olhava, subia no monte, tinha quase aproximadamente 90 metros de altura.
05:53E é uma coisa que todo mundo se pergunta, né, de onde vieram os sambaquianos, como
05:56é que eles surgiram e como eles terminaram, né, por que que pararam de construir os sambaquis
06:01e tal.
06:02E a gente tem que pensar, na minha opinião, no processo de história de vida de um território.
06:10Quando a gente, nós humanos, chegamos numa área que a gente não conhece, a gente não
06:17chega já morando, decidindo aonde vai ficar e colocando suas estruturas permanentes no
06:25lugar.
06:26Você vai chegando, vai conhecendo os lugares bons, onde tem boa matéria-prima, onde tem
06:31boa área de pesca e aí depois, num outro momento, quando há necessidade do seu grupo
06:38talvez de se estabelecer em algum lugar, você se recorda que há aquele lugar e vai
06:44para um lugar que você já conhecia.
06:48Essa etapa inicial, há 8.600 anos que a gente está começando a mapear aqui, que são esses
06:55sítios relacionados a caçadores-coletores, possivelmente incursões de pequeno porte,
07:03eles estariam relacionados a esse processo de conhecimento do território, que talvez
07:06em outros lugares já tivesse se estabelecido.
07:11E daí, quando chega a 6.000, 5.000 anos, já fazia parte do espaço de conhecimento
07:19desse grupo.
07:20E aí, sim, se estabeleceram os sambaquis.
07:23A verdade é que os sambaquis possivelmente estão, certamente, entre os sítios arqueológicos
07:35mais estudados no Brasil, e a gente ainda sabe muito pouco deles, em parte porque o
07:42nosso olhar durante muitos anos foi desviado, procurando interpretá-los como algo que
07:51talvez eles não fossem.
07:56Recheados de conchas, os sambaquis se assemelham a grandes lixeiras de um banquete milenar.
08:02Mas, na verdade, eles marcam a presença de uma civilização duradoura e privilegiada
08:07ao longo de nossa costa.
08:09Geração após geração, os sambaqueiros ergueram suas montanhas à beira-mar, zelando
08:15por elas como se fossem santuários.
08:18Decifrar esses espaços sagrados é hoje um dos grandes desafios da arqueologia brasileira.
08:26Por toda visão, eu diria até bastante preconceituosa na ideia de que eram grupos primitivos, eram
08:34grupos com uma sociedade muito simples, desprovisos de religião, prevaleceu a ideia que aquilo
08:43era o acúmulo de restos alimentares.
08:45Uma ideia que hoje em dia, para nós, soa um pouco fantasiosa, é como se um grupo estivesse
08:52comendo moluscos, ostra, mexilhão, subisse uma montanha, às vezes de 10 metros, 20,
09:0030, para jogar os restos alimentares lá.
09:03E, por trás dessa ideia, está embutido que ali era um local de habitação, era um local
09:08de moradia.
09:09E que eu comecei a chamar a atenção que aquele material que estava ali, ele não parecia
09:15tanto quanto o material que estava associado à alimentação.
09:20Ele era claramente um material construtivo, era a intenção primeira dos sambaqueiros
09:26da visibilidade daquele espaço.
09:29Eles escolheram pontos elevados na planície costeira, muito elevados, 1, 2, 4, 5 metros,
09:36para implantar os sítios, e tudo era para cima, tudo era construído para dar visibilidade.
09:42E eu vi também que todos os sítios apareciam restos humanos.
09:51Qualquer pequena intervenção resultava na presença de restos humanos.
09:56Escavações grandes tinham recuperado 100, 200 indivíduos.
10:01Às vezes uma intervenção pequena, saia um fêmur, um crânio, e eu falei assim, qual
10:06grupo, qual cultura coloca no mesmo espaço lixo, resto de comida e as relíquias dos
10:15seus entes queridos.
10:16O Canissa é um sítio muito importante, ele também foi escavado na década de 70, na
10:31realidade ele foi escavado na década de 70 por meio de salvamentos, assim, porque ele
10:36era minerado.
10:37Enquanto ele era minerado, apareciam os esqueletos, o dono da mineradora ligava para a Universidade
10:43Federal, eles vinham, Piazza, Ana Maria Becker ia ali, retirava, escavava o esqueleto, levava
10:50para lá e o sítio ia sendo desmontado lentamente.
10:59Nós começamos a perceber, primeiro, que as coisas tinham uma organização que não era
11:05parecida com uma organização de um local de moradia, uma das coisas que chamou a atenção
11:11é que existiam lentes enegrecidas, resultado do acúmulo de material orgânico, e que dessas
11:16lentes saiam marcas destacas.
11:19Os esqueletos, que nós imaginávamos que estavam dispersos no sítio, estavam sempre
11:23naqueles espaços, e nós fomos preparando esses perfis, limpando, e quando nós avançávamos
11:29um pouquinho mais, nós encontrávamos mais marcas destacas, e um dia, os quatro coordenadores
11:36nos perguntamos, que tipo de casa é essa que só tem paredes, que espaço era esse
11:44que atrás de uma parede, logo depois, cinco centímetros depois, vinha outra sequência
11:49de destacas, outra sequência de destacas, nós estávamos diante de uma coisa muito
11:54diferente, e com a observação, análise desse longo perfil, nós começamos a perceber
12:01que existia uma ordem, e que essas destacas não estavam delimitando locais de habitação,
12:09e sim áreas funerárias.
12:11Tem vários detalhes, e os detalhes variam de região para região, os detalhes na Baía
12:19de Guanabara, no Rio de Janeiro, por exemplo, diferem um pouco dos detalhes aqui dessa região
12:25do sul.
12:26Mas a estrutura geral, básica, vamos dizer assim, envolve o preparo de uma certa superfície,
12:35na qual, esse preparo, às vezes, envolve inclusive deposição de conchas, formando
12:40uma espécie de piso, enfim, tem modalidades de preparação, você prepara uma certa superfície,
12:49que geralmente é grande o suficiente para se colocar vários sepultamentos, nessas superfícies
12:56os mortos são colocados envoltos, bem atados, envoltos em alguma coisa, ou em tecidos bem
13:05amarrados, ou em esteiras de palha, alguma coisa assim.
13:13Na área Ione, que tem esse tipo, esses penhascos, essas ribanceiras, esses barrancos, não
13:20só aqui, como em todo lugar.
13:21Igual assim, a gente, como é de costume, quando a gente começa a mexer aqui, que tu
13:28vê, mudar a coloração da concha, que ela não é branca, a gente já começa a crer
13:35que tem alguma ossada, ou humana, ou ossada de qualquer uma outra espécie.
13:44E percebemos outras coisas interessantes também, essas marcas, destacas que nós vimos, e que
13:51outros pesquisadores já tinham notado e tinham associado muitas vezes com moradia, formavam
13:59uma espécie de cerca para proteger os corpos que tinham sido ali depositados.
14:05Mas estruturalmente falando, na maneira de conceber o Sambaqui, e na maneira de construir
14:12sua subsistência, eles são muito parecidos.
14:14É uma cultura que tem uma certa homogeneidade, ao longo de todo este trecho.
14:19Os Sambaquis maiores, esses que aqui na região sul de Santa Catarina adquirem dimensões
14:46monumentais, são muito grandes, muito visíveis, esses Sambaquis são em sua maior parte estruturas
14:54associadas a sepultamentos, áreas funerárias que são construídas, preparadas e depois
15:03recobertas sistematicamente, isso ao longo de gerações, num processo que vai gerando
15:10esses grandes Sambaquis, os maiores.
15:16O Garupa Bão é um sítio maravilhoso, além de estar ali marcando a paisagem, ele é
15:22um Sambaqui que tem pelo menos dois hectares, tem 30 metros de altura na parte mais alta,
15:29ele era um dos maiores Sambaquis do nosso litoral, ele foi brutalmente minerado na década
15:34de 60 e 70, e ele, mesmo assim, ele ainda hoje representa o maior Sambaqui pelo menos
15:44do Brasil, eu diria.
15:45Quando você olha a magnitude dos Sambaquis de Santa Catarina, eu vejo que há uma tendência
16:09na espécie humana, se você a acompanha ao longo da sua trajetória, em demonstrar
16:17poder ou aquisição de poder através da altura, de como ela se coloca em relação a quem
16:29está mais embaixo, altura é uma coisa fortemente simbólica, então você se colocar acima do
16:36outro, isso te dá uma condição de poder.
16:39E depois que vários sepultamentos estão colocados, existe algo assim como seria fechar
16:48aquela área funerária, a gente chama isso de área funerária, onde tem um grupo de
16:55sepultamentos e aí isso é fechado com a deposição de um pacote espesso de conchas,
17:01tem outros jeitos, mas é comum que seja um pacote espesso de conchas, e o processo depois
17:06começa de novo em cima.
17:09Isso acontece em vários lugares ao mesmo tempo próximos e que se sobrepõe também,
17:14não exatamente um em cima do outro.
17:17Quando você olha isso na parede, a gente chama isso de estratigrafia, que são as
17:21camadas que vão se formando com essas deposições sucessivas, com isso o Sambaqui ganha volume
17:28ao longo dos anos, alguns Sambaqui foram construídos por 1500, 2000 anos, isso dá
17:35uma ideia de o quanto ele cresceu nesse processo de internados mortos sucessivamente.
17:42E também não é à toa que os Sambaquieiros escolheram para construir esse espaço as
17:49conchas, porque as conchas primeiro você consegue volume rapidamente acumulando conchas,
17:55são excelentes materiais construtivos, tanto no que se refere à dureza, mas também eles
18:01permitem a drenagem da água, e a cal, como todos nós sabemos, ele é um excelente material
18:07para conservar, matéria orgânica.
18:09Muitos dos esqueletos recuperados em Sambaqui estão em excelente estado de conservação,
18:16e essas cercas em volta, que não foram feitas com uma madeira qualquer, não era uma cerquinha
18:21qualquer, as que nós já pudemos analisar, elas foram feitas com madeira de lei, e muitas
18:26estavam numa profundidade razoável, que era para impedir a ação de animais carniceiros.
18:33No caso do Cubatão, por ele ter estado sempre numa região muito pantanosa, muito úmida,
18:46muito próximo do rio, um lençol frático alto, ele sempre teve a base bastante úmida,
18:54e isso permitiu que se preservassem alguns elementos, algumas estruturas feitas de madeira
19:01e de fibras trançadas que se preservassem ao longo de 3 mil anos.
19:05E a gente identifica hoje nitidamente uma sucessão de alinhamentos de estacas preparadas
19:14de madeiras, madeiras finas, pontiagudas, trabalhadas enterradas, e que elas são amarradas
19:23entre si, tem madeiras de pé e tem madeiras deitadas, que são amarradas entre si, e que
19:29se estendem abaixo de todo o sítio.
19:32Elas seguem um padrão, as estacas, as estacas amarradas, um preenchimento de rocha e depois
19:38por cima concha.
19:41E aí pesquisando e falando com profissionais que trabalham no campo da engenharia, que
19:46trabalham com encostas, com contenção, com estabilização de terrenos, pessoal que trabalha,
19:52por exemplo, em áreas que vão receber aterros, um aterro sanitário, qualquer tipo de aterro,
19:59e que eles usam estruturas que são relativamente parecidas para fazer uma estabilidade desse
20:08solo.
20:09Eles trabalham justamente com estacas e grelhas, que amarram essas estacas, e isso vai a posto
20:15e depois acima disso vem a construção.
20:17E a Morinches, o Sambaquiri Amorim, eles dão uma visão clara.
20:25Como ele está numa abaixada fluminense, numa área inundável, bem perto do rio, e era
20:32ali que eles queriam ficar, porque era um grupo canoeiro, provavelmente aproveitavam
20:37esse rio para ir pescar no mangue, nas águas tranquilas da Baía de Guanabara, e chegavam
20:42com suas canoas bem próximo da aldeia, nessa área, a Macenta, eles construíram uma base,
20:50um pacote com conchas de grande porte, e só depois eles começaram a usar aquele espaço
20:56como local funerário.
20:58Então, essa visão desse perfil permitiu que a gente entendesse um pouco mais sobre
21:06o início do processo de construção do Sambaquiri.
21:22No momento que nós descobrimos que os sítios eram cemitérios, nós percebemos que temos
21:27que dar uma guinada no foco da nossa pesquisa, nós temos que olhar mais para os sepultamentos,
21:33nós temos que olhar mais para os esqueletos, e é aí que nós montamos esse projeto aqui,
21:39com apoio da equipe da Fiocruz e os bioarqueólogos, também do Museu Nacional, e trouxemos vários
21:46esqueletos em bloco para esse laboratório, e esse material está sendo analisado com
21:52muito cuidado, e nós estamos percebendo outras coisas do ritual funerário.
21:57Nós encontramos em campo, no lugar das patelas, duas conchas como se fossem representando
22:08a patela.
22:09É uma forma que a gente está tentando interpretar como sendo alguns passos do ritual funerário
22:16que era empreendido por esses grupos sambaqueiros.
22:27Então, a gente encontra bastante material rolado aqui na praia, aqui a gente tem além
22:53desse monte de fauna, ossinho de peixe, espinho de peixe, encontra também material
23:00ósseo humano.
23:01Tem um pedaço de crânio, um fragmento de osso longo, e eles caíram do paredão.
23:16A gente procura sempre levar pelo menos o osso humano.
23:22Os ossos de mamíferos têm uma geometria interna, um tipo de porosidade diferente das
23:30aves e dos répteis, por exemplo, e os humanos também têm um conjunto de medidas de aparência
23:43específico.
23:45Eu estou te falando do que a gente chama de casa de pedra, que é um sítio que foi localizado
23:58não faz muitos anos, meio por acaso, e que desde então, isso foi no início dos anos
24:052000, acho que 2002, desde então a gente ficou com a pulga atrás da orelha.
24:08Por quê?
24:09Porque é um abrigo e que tem concha dentro, esse registro.
24:12A gente não tem quase abrigo nenhum aqui, na litoral não se tem quase abrigo e aqui
24:17na Babitonga poucos, então ele já é uma formação pouco rara e aí com as conchas
24:23dentro.
24:24Quando a gente começou a pesquisar, a gente viu esqueletos humanos na superfície, na
24:29verdade não esqueletos, é fragmentos de peças de ossos humanos na superfície.
24:35E a primeira coisa que a gente foi fazer foi datar, e daí foi que a gente conseguiu uma
24:39datação que está a quase 6 mil anos para o osso humano.
24:43O fato é que, assim, é mais uma variante dentro desse grande conceito de sambaquice
24:48que a gente está pensando.
24:49Pedras lapidadas, peixes e pássaros encantados.
24:59Pela mão do artista, a rocha dura ganhou feições e se tornou zoólito, palavra emprestada
25:06do grego que significa animais feitos de pedra.
25:10Poderiam ter sido objetos de veneração ou ferramentas do xamã para um culto misterioso.
25:17A única certeza é que, além de areia e conchas, o mundo do sambaqui também é feito
25:23de imaginação.
25:24Se a gente for ver do Rio de Janeiro para Rio Grande do Sul, que nós notamos, Rio de
25:34Janeiro, ao norte do litoral de São Paulo, no sambaquice nós temos alguns objetos que
25:39não existem.
25:40Enquanto no sul de São Paulo até o Uruguai, inclusive, além do sambaquice, nós temos
25:47alguns objetos que se encontram em toda essa porção do litoral e que não existem no
25:53norte.
25:54Então, esses objetos são justamente os objetos de pedra que requereram a maior quantidade
26:02de trabalho.
26:03Então, eram certamente objetos importantes, os tais zoólitos que são representações
26:10de animais em pedra.
26:12Tem também algumas representações em osso de baleia.
26:15Então, a gente pode imaginar que a presença dele seja um indicador de alguma, pode ser
26:25uma ideologia ou pelo menos algum em comum que tivesse no sambaquice meridional.
26:29Não é qualquer pessoa que faz aquilo que está ali, o que permite pensar na possibilidade
26:40de indivíduos, fora da ocupação de saírem em busca do alimento de cada dia, e já com
26:51uma disponibilidade de tempo para se dedicar a uma produção artística.
26:57Aqueles artefatos não são objetos de todo dia, eles são artefatos obviamente utilizados
27:03em rituais e em rituais que você pode pressupor, porque vocês observaram que há uma cavidade
27:12ventral neles.
27:14Todos apresentam uma cavidade ventral.
27:17Ora, o ventre é a reprodução da vida.
27:23Então podemos pensar na possibilidade de rituais ligados à reprodução, à sexualidade,
27:32à vida de uma maneira geral e, mais ainda, temos que pensar para que serviam aquelas
27:39cavidades.
27:40Aquelas cavidades serviam para quê?
27:43Você não processa alimento em uma cavidade desse tamanho, como é que vocês viram ali?
27:48Cavidades rasas.
27:49Para que serviam?
27:53Se nós pensarmos que nossas populações nativas sempre fizeram uso de substâncias
28:00que os levavam a estados alterados de consciência, parafis ritualísticos, pensamos na possibilidade
28:09desses alimentos serem utilizados no preparo de substâncias que levassem a estados alterados
28:17de consciência, na circunstância de rituais, de práticas rituais ligadas à fecundidade,
28:23ligadas à reprodução da vida.
28:26Como se a gente pensasse que numa religião, como a religião cristã, nós vamos ter o
28:44crucifixo em uma extensão muito grande, geográfica.
28:51Onde tem cristão, tem o crucifixo.
28:53Agora, junto com o crucifixo, pode ter ou não outras coisas nos templos e nas igrejas.
29:02Por exemplo, a Virgem Maria você vai ter nas zonas católicas ortodoxas.
29:08Nas zonas protestantes você não vai ter.
29:10Você vai ter santos que você vai encontrar na igreja ortodoxa e não na igreja católica.
29:16Ou seja, você tem uma coisa em comum, o crucifixo.
29:20Você tem santos e santas que são locais.
29:23Temos a mesma coisa com os hólitos.
29:26Não quero dizer com isso que se tratem de objetos de culto.
29:31Nós não sabemos o que eles significavam.
29:33Eles tinham um significado certamente muito importante, simbolicamente, mas nós não
29:37sabemos se eram cultuados ou se era outra coisa.
29:45Então tem artefatos que acompanham o morto, artefatos quebrados.
29:50Eles assassinavam também os artefatos.
29:52Os artefatos eram mortos, simbolicamente, gastos.
29:57Machados são cegados, intencionalmente, ou partidos ao meio e são depositados junto
30:03aos mortos.
30:04E há também oferendas de alimento inteiros, então peixe inteiro, conchas fechadas, moluscos
30:10colhidos e depositados, não comidos.
30:14Mas junto com isso tem muito resto de alimentação, que aparentemente não é resto de alimentação
30:20cotidiana, mas está ligado a esses festinhos fúnebres associados às cerimônias mortuárias.
30:26Aquela coisa de comer e beber o morto.
30:31Temos muita evidência de comer o morto e não sabemos se bebiam, mas eu aposto que
30:38sim.
30:39Os sambaquianos eram vistos como grupos, nômades, pequenos bandos de caçadores-coletores,
30:52essencialmente comedores de molusco, bota aspas dos dois lados aí, nesses comedores
30:58de molusco.
30:59E começou-se a demonstrar, principalmente a partir do trabalho do Levi Figut, que foi
31:04muito importante, que o que eles estavam comendo de verdade, a base da alimentação,
31:12não era molusco, era peixe.
31:15E aí eles passaram a ser vistos como pescadores, inclusive a denominação mudou, passou-se
31:21a chamar pescador-coletor-caçador.
31:23Eles são pescadores, pescam com rede, com anzol, são pescadores, grandes pescadores,
31:33tem alguma caça submarina, a gente tem restos de tubarão, tem restos de baleia, baleias
31:39encalham e eventualmente eles aproveitam isso, enfim, caçam também, então faz parte da
31:47subsistência deles o universo animal das matas, da floresta, tatu, cutia, anta, espécies
31:57assim e certamente existe um universo de alimentos vegetais com que eles estão acostumados.
32:08Perceber que vestígios de plantas alimentícias, inclusive milho e mandioca, poderiam estar
32:23em elementos microscópios que foram guardados no sedimento, nos artefatos cerâmicos, olíticos
32:31usados para preparação ou nos dentes das pessoas, isso revolucionou o nosso potencial
32:38de entender essas associações entre humanos e plantas.
32:47Um dos primórdios da arqueologia é que a botânica tinha uma função meramente descritiva,
32:53o que estava presente era interpretado de uma forma até bastante simplista, eles comiam
33:00isso ou eles usavam isso e ponto.
33:05Hoje a gente se preocupa com outro nível de interpretação, então é muito importante
33:10que a gente saiba como esses restos estão aparecendo no sítio arqueológico, em que
33:15contexto eles estão, em que associações eles se apresentam, de forma que as interpretações
33:21se multipliquem também.
33:22O que é interessante da anatomia da madeira é que ela é mais precisa ainda do que a
33:31palinologia que tradicionalmente é utilizada para identificar plantas no passado, o que
33:38significa que eu posso saber exatamente qual foi a planta a nível específico que queimou.
33:45Uma fogueira de curta duração, uma fogueira que foi acesa e durou pouco tempo, ela vai
34:01ter poucos vestígios de plantas, porque tem duas, três, quatro medos de espécies que
34:07estavam ali em volta e que queimaram naquele momento.
34:11Uma fogueira que é muito rica, ela necessariamente vai ter uma diversidade maior de vestígios
34:19porque ela representa mais idas em volta daquele acampamento, daquela situação, para coletá-la
34:27e trazer para a fogueira.
34:30Então a riqueza de espécies de uma fogueira ou de uma amostra pode ser interpretada como
34:38um elemento que indica tempo ou o número de usos que esse espaço teve.
34:48E o que a gente vê é que algumas fogueiras de Sambaqui, particularmente as fogueiras
34:53funerárias que estão associadas a sepultamento, elas são extremamente ricas, elas têm uma
34:59grande diversidade.
35:01Essa diversidade sugere longa duração, sugere que não são fogueiras que foram feitas só
35:08ali na hora que a gente estava enterrando morto, mas que foram alimentadas reiteradamente
35:15e receberam uma atenção, uma volta, um cuidado para serem mantidas acesas durante um longo
35:22tempo.
35:23Urnas funerárias, vasos para alimentos ou acessórios do xamã, ao longo da pré-história
35:34a cerâmica teve muitos fins, mas para os povos da Orla ela simbolizou o fim de uma
35:40era.
35:41O mundo dos sambaqueiros acabou com a chegada dos ceramistas, os povos Jê vindo do centro-oeste,
35:48os guerreiros Tupi do norte.
35:50Esses forasteiros chegaram em peso, muitos deles como invasores, e moldaram o novo território
35:57como trabalhavam o barro, impondo sua forma.
36:01Uma das possibilidades do sumiço da sociedade seria uma mudança climática brusca, uma
36:14alteração climática muito forte em função dessa diminuição da lagoa, da diminuição
36:19da matéria-prima de construção de sítios, e eles de alguma maneira poderiam ter saído
36:24daqui, ter migrado para outras partes do Brasil.
36:29Uma outra possibilidade, que eu acho muito mais plausível, é a chegada dos povos Jê,
36:36dos macros Jê meridionais.
36:37Então esse povo que teria migrado do centro-oeste do Brasil para o sul, teria chegado ao litoral
36:43aproximadamente 1400, 1300 a.p.m., teria entrado em contato com essa sociedade sambaqueira
36:51e teria se adaptado a essa cultura, porque os Jês têm essa plasticidade nessa adaptação.
36:59Então como a característica da sociedade sambaqueira não era uma característica bélica,
37:06os Jês chegam e se moldam a essa cultura e, de repente, a cultura sambaqueira mesclada,
37:14essa cultura Jê, acaba se desaparecendo da forma como a gente acostumou a ver durante
37:22esses milhares de anos.
37:28Por exemplo, a região dos lagos, você vê que em um determinado momento, até o início
37:33da era cristã, só tem sambaqui, eles são os soberanos da costa, eu adoro essa ideia
37:41porque eles estão mandando território, área de captação de recursos, eles não estão
37:46disputando com ninguém, eles estão ali soberanos.
37:52Por volta da era cristã, do início da era cristã, você começa a ver aldeias Tupi
37:59e Angelo Buarque tem uma datação antiga e isso é super interessante porque aqui na
38:05região dos lagos o território sambaqueiro foi invadido pelos Tupi.
38:09E quem são os Tupi?
38:10Tupi é um grupo que tem origem na Amazônia, tem uma sociedade que se estrutura a partir
38:17da guerra e que tem a incorporação do outro como um dos valores centrais, inclusive através
38:24do canibalismo.
38:25O que nós temos do outro lado?
38:27Os sambaqueiros, uma sociedade que parece ter investido muito em permanecer igual ou
38:34pelo menos não mudar muito, enquanto tem um grupo que está num processo de expansão
38:42avassalador que chega a ocupar parte significativa da América do Sul e os sambaqueiros não
38:50tiveram tempo de reagir a esse grupo.
38:54Muito provavelmente corpos de sambaqueiros foram tomados pelos Tupi no processo de invasão
39:02desse território.
39:03O território, a área de captação de recursos, o território sambaqueiro foi invadido pelos
39:08ceramistas.
39:09O que os Tupi queriam?
39:11A incorporação do outro.
39:13Quem era o outro nessa situação?
39:14Os sambaqueiros, que tudo indica, não resolviam seus conflitos partindo para disputa corporal,
39:23deviam resolver de outra maneira, talvez na fala, na construção de outro sítio,
39:29enquanto se depararam com um grupo guerreiro.
39:33Então eles devem ter sido alvo de práticas canibalistas ou migrado e não mais se construíam
39:41sambaquis, ou seja, o programa de construção de sambaquis entrou em colapso com a invasão
39:47dos ceramistas.
39:48Nos sambaquis descobrimos a capacidade de nossos ancestrais de erguer montanhas em homenagem
39:58aos mortos.
39:59Mas os povos da concha são apenas um exemplo de como os pioneiros do nosso país se mobilizaram
40:06para transformar o mundo à sua volta.
40:09Das casas subterrâneas do sul aos geoglifos do Acre, os primeiros brasileiros revelaram-se
40:15engenheiros natos.
40:18Mais do que rearrumar a natureza, eles entenderam como inspirar multidões para encarar empreitadas
40:25complexas em trabalhos coletivos.
40:28E o estudo dessas obras ainda está apenas começando.
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