- 15/05/2025
01-Amazônia 10 milhões
Com Claide de Paula Moraes
Engana-se quem acha que a maior floresta tropical do planeta sempre foi um mundo desprovido de civilização. Escavações ao longo da bacia amazônica vêm hoje desmentir a velha ideia do paraíso intocado e puro. Há milhares de anos, muita gente vivia na Amazônia.
Gente que conseguiu a proeza de tirar riquezas e sustento da terra, manejando terrenos e transformando seu mundo sem destruí-lo.
Com Claide de Paula Moraes
Engana-se quem acha que a maior floresta tropical do planeta sempre foi um mundo desprovido de civilização. Escavações ao longo da bacia amazônica vêm hoje desmentir a velha ideia do paraíso intocado e puro. Há milhares de anos, muita gente vivia na Amazônia.
Gente que conseguiu a proeza de tirar riquezas e sustento da terra, manejando terrenos e transformando seu mundo sem destruí-lo.
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AprendizadoTranscrição
00:30Água. Muita água. A Amazônia é um mundo de água cercado por um oceano verde de todos
00:55os lados. E engana-se quem pensa que a maior floresta tropical do planeta sempre foi um
01:02mundo vazio e desprovido de civilização. Escavações em sítios arqueológicos ao
01:09longo da bacia amazônica vêm hoje desmentir a velha ideia do paraíso ilusório. Há milhares
01:17de anos na Amazônia vivia muita gente. Ok, não era o Éden e nem o Eldorado como sonhavam os
01:26ávidos conquistadores europeus. Mas nossos ancestrais conseguiram a proeza de tirar
01:33riquezas e sustentos da terra, manejando terrenos e transformando seu mundo sem destruí-lo.
01:47Santarém, se você for olhar o registro arqueológico de Santarém de mil anos atrás,
02:06de 800 anos atrás, ele é quase equivalente ao da população que está vivendo em Santarém hoje.
02:13Santarém tem 300 mil habitantes aproximadamente. Se você for olhar a quantidade de sítios
02:19arqueológicos contemporâneos que tem aqui no município de Santarém, talvez a gente chegue
02:24a uma estimativa parecida com a dos 300 mil. E aí se você pensar isso para a Amazônia,
02:28talvez a gente tenha um número próximo dos 10 milhões. O que eu posso te afirmar com certeza
02:36é que os sítios arqueológicos que a gente estuda são muito maiores que qualquer aldeia indígena
02:41que tem hoje na Amazônia. Então, assim, que há mil anos atrás tinha mais gente na Amazônia do que
02:48tinha há, sei lá, 300 anos atrás, com certeza.
03:11O que aconteceu aqui na Amazônia? Quando os europeus chegam aqui no século 16, a gente tem
03:27poucos relatos, mas esses relatos falam de muita gente vivendo aqui. Com os europeus vieram duas
03:34coisas, além das populações europeias, vieram doenças e vieram exércitos. E essas doenças e
03:41exércitos levaram, não só aqui na Amazônia e em outras partes das Américas, a uma diminuição
03:47drástica das populações nativas. E o que acontece então? Nos primeiros dois séculos de colonização,
03:52a gente tem esse decréscimo demográfico muito grande, a floresta cresce sobre essas áreas que
03:56eram ocupadas anteriormente, e a gente sabe que a floresta tropical se regenera muito rapidamente,
04:01não havia estruturas de pedra, eram estruturas de terra. Então, parece que essa floresta, quando os
04:06primeiros cientistas chegam aqui no século 18, 19, o que eles veem é floresta sem evidência de
04:11vida humana e com pouca gente vivendo no presente. Isso contribuiu para que se criasse uma imagem de
04:17floresta virgem, inexplorada, sempre desabitada, que serviu de combustível, de ingrediente para
04:23a construção, nessa perspectiva de que os trópicos seriam regiões inóspitas e de difícil ocupação no
04:30passado e também no presente.
04:41Então, a Amazônia, ela não é só rica em biodiversidade não associada ao homem, mas ela é
04:57rica em uma biodiversidade que depende da ação humana para existir. Por quê? Porque essas espécies
05:06foram selecionadas e que hoje têm frutos maiores, frutos mais doces ou, por exemplo, raízes maiores,
05:13raízes com mais amido, elas foram selecionadas pelas populações indígenas no passado.
05:26As plantas acompanham muito as civilizações, né? Então, você passa a fazer parte dos quintais das
05:34aldeias, dos povos primitivos que viviam há 3 mil anos atrás, fazer parte da área aberta onde você
05:41constrói as aldeias, a população vive, tem os quintais que são as áreas do entorno, que se misturam
05:48matas secundárias depois da derrubada e os plantinhos, seja da mandioca, seja de tudo aquilo da sua medicina
05:58em volta da coisa, e aquilo vai tendo uma gradação até voltar de novo para a floresta onde é um território
06:06de caça, de passagem, onde eu vou lá para caçar o porco, a anta, o macaco, seja o que for.
06:14Floresta exuberante, solo pobre, assim nos acostumamos a saber a Amazônia.
06:20Hoje, no entanto, esse velho bordão tropical já não serve mais, é só raspar o chão debaixo das árvores
06:28e a riqueza desponta, preta e fecunda, e feita pela mão do homem.
06:35Essa camada escura que a gente está vendo aqui, ela foi datada em 6.500 anos antes do presente,
06:41é uma das terras pretas mais antigas conhecidas e está sendo escavada pela gente aqui.
06:46A gente vai conseguir entender qual era o contexto de ocupação e de manejo dos recursos nessa época
06:52a partir dessa amostra de solo aqui.
07:06O que a terra preta tem de diferente dos solos que predominam na Amazônia, os latossolos e os largissolos,
07:12que todos nós sabemos que são solos considerados com um problema seríssimo químico,
07:16baixa fertilidade, baixo teor de nutrientes importantes para a nutrição mineral das plantas, para a produção.
07:22De repente você encontra uma terra preta de índio que é altamente fértil, tem um pH considerado ótimo
07:28comparado com o pH dos latossolos e dos largissolos, tem grande quantidade de nutrientes que são extremamente importantes
07:36e que são limitantes, fatores limitantes para a produção agrícola na Amazônia.
07:42Agora a grande pergunta é o seguinte, como que nossos irmãos, a população indígena no passado conseguiu construir um solo desse
07:50tão fértil, estável, duradouro e que até hoje nós temos na prática um exemplo de uma agricultura familiar sustentável,
07:58sem degradar o meio ambiente, foi o que nossos índios fizeram.
08:07Mas eu imagino que é o que? É lixo orgânico, é um grande composto na verdade, é resto de carvão, resto de comida
08:14que vai sendo depositado, os quintais das casas ao redor vão sendo limpos, varridos, se você vai queimando aquilo
08:20a baixa temperatura, tem muito fosfato que vem dos ossos de peixes e outros animais, semente carbonizada.
08:27Eles sabiam primeiro manejar o fogo, eles sabiam manejar o fogo, nós não sabemos.
08:34Eles usavam o fogo como ferramenta para que? Para abrir a área, para melhorar o solo, para caçar, para tudo, para alimento, para tudo.
08:44Eles sabiam utilizar o fogo, nós não sabemos, a gente usa o fogo para degradar.
08:55Nós trabalhamos com a premissa que as terras pretas surgem como consequência do estabelecimento de modos de vida sedentários.
09:02Em algum momento esses grupos param de ficar circulando, alguns deles se fixam em alguns locais
09:08e a terra preta começa a se formar como consequência desse processo de sedentarização.
09:13Se você voltar para a literatura arqueológica clássica, sedentarismo tem a ver com o que?
09:18Tem a ver com agricultura, mas se eu tiver certo no que eu estou falando para você, nós temos aqui sedentarismo sem agricultura.
09:33No passado de mil anos, 500 anos que a gente está estudando através da arqueologia,
09:38as populações não eram grandes agricultores, mas assim, não é que eles não conheciam a agricultura,
09:43é porque eles escolheram uma forma diferente.
09:45Então assim, se eles não cresceram como os monocultores de outros lugares que a gente conhece,
09:52talvez seja uma escolha e não uma imposição do ambiente como era a ideia que se tinha nas primeiras pesquisas.
10:02Aqui no Teutônio a gente teve até 2011 uma cachoeira onde a frequência de peixes e espécies era enorme,
10:12provavelmente um dos lugares mais piscosos da região amazônica.
10:15Tinha tanto peixe que em 94 o Ibama decidiu limitar a quantidade de pesca por pessoa por dia e eles limitaram em 400 quilos.
10:27Era muito peixe, é uma fonte de obteção de proteína, de alimento muito enorme, inesgotável até a inundação da cachoeira.
10:57Por exemplo aqui, onde nós estamos hoje, agora, dando a entrevista, é parte de um dos maiores sítios arqueológicos da Amazônia,
11:09que é o sítio Aldeia e o sítio Porto, que são os sítios aqui na área urbana de Santarém.
11:14E aqui, esse lugar, o solo é extremamente pobre, mesmo sendo uma das terras pretas maiores da Amazônia,
11:21a terra preta daqui é pobre, porque o solo aqui é muito arenoso.
11:24Então o que formou essa terra preta aqui, provavelmente é esse riozão que está aqui na frente,
11:29a quantidade de fauna aquática que as pessoas coletaram no rio e descartaram os restos aqui,
11:36é que provavelmente é o responsável pela formação da terra preta.
11:39Não é que essa terra preta é o resultado ou a intenção de fabricar, seja para a agricultura que poderia se fazer aqui na margem.
11:48Os começos dos estudos mais aprofundados, técnicos, científicos sobre a terra preta falam da fertilidade.
11:56O que tinha ali que trazia uma fertilidade do que eles consideravam uma terra pobre.
12:02Isso para mim é um assunto muito interessante, porque eu fico pensando, o que é uma terra pobre?
12:07Uma terra pobre que consegue suportar uma das maiores florestas tropicales da Amazônia.
12:13Uma terra pobre que consegue suportar uma das maiores florestas tropicais do mundo,
12:19com árvores de 30, 40 metros, com uma riqueza, uma diversidade de espécies.
12:26Pode uma terra que permite a sobrevivência de uma flora, de um bioma, de um ecossistema florestal, não florestal,
12:39como é o da Amazônia, ser chamada de pobre?
12:43O que é uma terra pobre?
12:45Uma terra pobre que consegue suportar uma das maiores florestas tropicales do mundo,
12:52com árvores de 30, 40 metros, com uma diversidade de espécies.
12:57O que é uma terra pobre?
12:59Uma terra pobre que consegue suportar uma das maiores florestas tropicales do mundo,
13:05com árvores de 30, 40 metros, com uma diversidade de espécies.
13:10O que é uma terra pobre?
13:12Uma terra pobre que consegue suportar uma das maiores florestas tropicales do mundo,
13:19com árvores de 30, 40 metros, com uma diversidade de espécies.
13:24O que é uma terra pobre?
13:26Uma terra pobre que consegue suportar uma das maiores florestas tropicales do mundo,
13:32com árvores de 30, 40 metros, com uma diversidade de espécies.
13:37O que é uma terra pobre?
13:42E eu penso que a arqueologia tem um papel fundamental,
13:45ela pode ser uma ferramenta poderosíssima para a gente fazer uma crítica dessa concepção política,
13:51ao mostrar, ao tentar entender como populações têm vivido e ocupado regiões tropicais equatoriais,
13:56como é o caso aqui da Amazônia, ao longo de milênios.
13:59E uma questão importante, que eu acho que é uma questão chave que entra nessa conversa,
14:03é o que eu chamo de manejo da abundância.
14:05Se a gente for olhar nossa tradição intelectual, que talvez venha desde a Bíblia,
14:10está baseado em que?
14:11Em modos de vida que se desenvolveram em regiões áridas ou semiáridas, como é o caso ali do Oriente Médio.
14:16A nossa maneira de pensar o mundo está muito baseada em manejo de escassez.
14:20E eu acho que a gente não está preparado para manejar a abundância.
14:23E muitos desses enganos, dessas ideias erradas que nós temos sobre os trópicos,
14:28vem do fato de que os trópicos são regiões de abundância.
14:36Estima-se que existam 16 mil espécies de árvores e palmeiras na Amazônia.
14:42Dessas 16 mil, só 227 espécies ocupam metade de todas as árvores que ocorrem na floresta.
14:53E dessas pouquíssimas espécies, 227 que ocupam metade da floresta amazônica,
15:0020 delas têm alguma evidência de domesticação.
15:03Então, isso chama atenção por quê?
15:06Porque a floresta concentra também recursos muito importantes para o sustento das populações.
15:14E essas árvores podem contar uma história de uso da floresta.
15:18Porque uma espécie totalmente domesticada,
15:21ela necessita da ação humana para ela se manter.
15:27Como, por exemplo, a mandioca.
15:29A mandioca domesticada,
15:31que é o principal alimento das populações daqui da Amazônia, das populações ribeirinhas,
15:37e possivelmente foi um importante alimento no passado,
15:41é uma espécie que foi totalmente domesticada.
15:45Mas você pode encontrar os indivíduos silvestres dessas espécies.
15:50E a partir do estudo dos indivíduos silvestres,
15:53você consegue remontar a história de dispersão da mandioca pela Amazônia.
15:58Então, através do estudo de certas plantas,
16:02a gente consegue entender a história humana também.
16:13Sempre se vê a Amazônia como um ambiente muito semelhante em todos os lugares.
16:16A gente está vendo a floresta, a floresta amazônica,
16:19sempre se vê a Amazônia como um ambiente muito semelhante em todos os lugares.
16:22A gente está vendo que não,
16:24que o que tem de comum em todas essas ocupações é essa agência sobre o meio,
16:29essa transformação da paisagem para intensificar a produção de alimentos
16:34para alimentar uma população que está crescendo.
16:37Então isso, para mim, liga todas essas ocupações da Amazônia.
16:50É muito difícil pensar na Amazônia como um vazio demográfico.
16:54E, principalmente, as conexões que ligam a Amazônia, a Pan-Amazônia,
17:01sejam as conexões fluviais e sejam as estradas, as conexões terrestres,
17:07mostram que essas populações estavam se comunicando fortemente.
17:13E a cerâmica nos mostra isso.
17:15E a cerâmica nos mostra isso.
17:17As similitudes em termos de cerâmicas, em termos de contextos,
17:23em termos de modo de vida e de modo de operar em regiões tão afastadas entre si,
17:29nos mostram que existia uma forte rede de comunicação.
17:34Então nós não estamos falando de troca de objeto necessariamente,
17:41embora essa hipótese não seja descartada,
17:44mas nós estamos falando de redes de troca de ideias, principalmente.
17:48Então são pessoas, são objetos e, mais especialmente, são ideias circulando.
18:09Por muito tempo se olhou as cerâmicas do ponto de vista funcional.
18:13Então nós fazíamos nossas tipologias de vasilhames, sobretudo,
18:18porque a gente sabia que isso era importante,
18:20isso tinha a ver com sistemas de processamento de alimento,
18:24do que eles plantavam, do que eles comiam, da economia, enfim,
18:29e que é uma coisa importante.
18:31Mas então a gente fazia nossas classificações, muito baseadas nas classificações,
18:37então são vasilhames para processar mandioca, então são grupos mandioqueiros,
18:42ah, não, tem gente que mexe com milho,
18:45a gente aproveitava esse aspecto econômico das cerâmicas
18:49e nunca o aspecto da cerâmica como uma espécie de mídia,
18:54para mensagens ideológicas, com toda aquela decoração que ela tem.
19:12Essa é uma vasilha cerâmica,
19:18um dos poucos exemplares inteiros da tradição Pocóçu-Tuba.
19:27Esses sítios com materiais, Pocóçu-Tuba,
19:32geralmente são os sítios com materiais,
19:37geralmente com terra preta ou terra preta incipiente,
19:40eles aparecem nessas regiões espalhadas pela calha do Amazonas,
19:45espalhada pela região amazônica de uma forma bastante grande
19:50e já aparecem com uma cerâmica extremamente elaborada, extremamente rebuscada.
19:56Realmente é uma cerâmica peculiar, belíssima,
20:00eu costumo brincar que é o barroco rococó,
20:03porque realmente são conjuntos bastante peculiares
20:06e que comunicam de uma forma surpreendente.
20:10E mais recentemente a gente começou a ver que esse material Pocóçu-Tuba,
20:14ele tem uma dispersão muito grande,
20:16ele está presente desde a região lá do Trombetos e Amundá,
20:20na Amazônia Central, ele aparece na Amazônia Colombiana,
20:23aparece aqui no Rio Madeira, aparece em Santarém,
20:26aparece em Roraima e também aparece aqui no Rio de Janeiro.
20:30Aparece em Santarém, aparece em Roraima e talvez até aparece nas Guianas,
20:37na Venezuela, ele tem uma dispersão que é quase continental.
20:40Então ele é um marcador, eu acho, essas cerâmicas,
20:42elas marcam um evento de dispersão de uma população pela Amazônia
20:47há mais ou menos uns 2.500 anos atrás.
20:50Muito se pensou em Amazônia em termos de hierarquia social
20:58para as populações amazônicas.
21:00E o que se tem visto, desde essas ocupações antigas,
21:06em torno de 2.000, 3.000 anos atrás, com o material Pocóçu-Tuba,
21:11é o que aparenta ser uma sociedade organizada em rede.
21:15Comunicações em torno de rede e não necessariamente com um único centro político
21:23ou um único centro de maior status.
21:34Há cerca de 1.000 anos, na foz do Rio Tapajós,
21:37surge uma civilização indígena que marca a ocupação no Baixo Amazonas
21:42com uma produção rica e de identidade própria.
21:47A cultura tapajônica está gravada em barro cozido
21:51com seus traços arrojados que fizeram dela
21:54uma verdadeira grífida para a história brasileira.
22:00O levantamento numa área ampla, ampla mesmo,
22:04pegando o Rio Tapajós e parte do Amazonas,
22:08do tamanho hoje do que a gente estima ser a Bélgica,
22:13o tamanho do território da Bélgica.
22:15Então você tem cerâmica espalhada de Santarém,
22:19não só na cidade de Santarém, não só ao longo do Rio Tapajós,
22:24mas pelo Rio Amazonas, acima, já onde há o Meirim e tal,
22:29quase chegando até o Xingu.
22:31É uma ampla área.
22:32Escavando Santarém, a cidade de Santarém,
22:37e escavando sítios da periferia de Santarém,
22:41há exemplo desse sítio de Carapanari,
22:45que, em algum momento da sua cronologia,
22:48foi contemporâneo à aldeia.
22:53Eu não encontro nada que me demonstre
22:58a existência de um poder central
23:00num sentido de padronização absoluta de um estilo
23:05e nem que esses grupos, essas aldeias periféricas
23:12dependessem do que seria essa aldeia central.
23:17Tampouco encontro, no registro arqueológico,
23:21vestígios de diferenciação de pessoas.
23:26O que a gente tem de fato?
23:27Por que essa cerâmica está sendo copiada?
23:31Ela não está sendo fabricada em Santarém
23:33e distribuída para outros centros.
23:36Isso é uma situação que ocorre, por exemplo, no Império Inca.
23:41Você tem centros produtores e distribuidores.
23:44Aqui não. Cada um faz a sua.
23:47Mas faz a sua de acordo com o padrão.
23:51Existem variações, mas as ideias são ideias que estão circulando
23:57e elas estão ligadas à existência de rituais xamânicos.
24:03E o que você tem aqui ligando, na minha opinião,
24:07esse centro a essas comunidades periféricas
24:13são cultos, cultos xamânicos que estão disseminados ali.
24:17Você tem uma rede.
24:23Na região, a gente tem relatos etno-históricos
24:27da existência de endocannibalismo.
24:30Além de enterrar as pessoas, o que eles praticavam?
24:34Eles cremavam as pessoas e as cinzas eram misturadas à bebida.
24:42Bebida de mandioca, enfim, bebida fermentada.
24:45E eram consumidas numa cerimônia.
24:48É a família do morto, enfim, são as pessoas mais próximas ali,
24:54possivelmente o xamã, e que vão consumir essas cinzas.
25:02É assim que se dá.
25:03E essa é uma forma terminal de você, ao ingerir o morto,
25:10fazer com que o morto desapareça mesmo.
25:12Os Yanomami falam que eles querem levar aquele parente com eles.
25:17Eles não querem mais sentir saudade, eles querem levar ele com eles.
25:20Eles não querem que a pessoa fique se decompondo na terra,
25:24sendo comido por outros bíblios.
25:26Eles querem estar com eles.
25:27Não quero que o meu parente suma.
25:30Ele tem que estar comigo.
25:33Música
25:49O que a gente percebe na Amazônia é que, ao contrário das nossas sociedades,
25:53onde você tem uma divisão mais clara e mais nítida,
25:57e mais brutal, e também mais violenta,
25:59entre o que seria o mundo dos vivos e o mundo dos mortos,
26:02várias populações indígenas mais antigas não têm essa separação,
26:07ou eles têm separações diferentes,
26:09onde os mundos, a gente pensa nos vivos e os mortos,
26:13não tem necessariamente que ficar separados.
26:16Aí até eu fui cavando aqui, aí achei essa bacia inteira aqui.
26:24Eu achei ela inteira, aí eu...
26:27Quando foi, eu botei ela pra dentro de casa, né?
26:29Quando foi uma das noites, aí eu escutei bater na beira dela, né?
26:35Batia assim, ó.
26:38Aí eu agarrei e fui lá ver, né?
26:41Sabia que era naquela bacia.
26:43Agarrei, peguei ela e quebrei e joguei lá pra dentro do mato.
26:47Não sei quem era, quem que fez essa bacia, né?
26:50Sabia que era uma índiona grande,
26:52uma de noite ia até lá me ver, lá.
26:54Aí essa daqui, a pedra da bacia.
27:08Monte Alegre é uma área mais árida, né?
27:10Assim, a vegetação é aberta,
27:12tem formações rochosas expostas em superfície,
27:16coisa que é bastante rara na Amazônia também.
27:19E tudo isso tá do lado do rio Amazonas, né?
27:22Então assim, tem várzea, tem savana, tem campo aberto,
27:27tem floresta, tudo num ambiente muito próximo, né?
27:31E isso pras populações humanas,
27:34essa diversidade é bastante atrativa, né?
27:36Porque se você depende dos recursos que estão no ambiente,
27:41se você tem possibilidade de coletar,
27:43o que a área aberta te proporciona de caçar,
27:45o que a área aberta te proporciona a várzea e isso,
27:48é bastante atrativo.
27:50E isso parece que foi percebido
27:52desde as primeiras ocupações humanas na Amazônia, né?
27:55Assim, os registros,
27:57alguns dos registros mais antigos de presença humana na Amazônia
28:00estão em Monte Alegre, né?
28:02Na Caverna da Pedra Pintada a gente já tem datas de 11.300 anos.
28:11O que é muito especial nesse local
28:14é o fato de que você encontra ali pinturas
28:17em abrigos, em cavernas e em paredões ao ar livre.
28:22Nesses paredões, o que chama muito a atenção
28:25são o tamanho das figuras,
28:27que são figuras muito grandes,
28:29com as cores ainda muito vivas
28:32e que parecem ter sido feitas para serem vistas a longa distância.
28:36Você consegue ver os grandes círculos
28:39desde, por exemplo, do Sopé da Serra.
28:42Da base da serra você consegue ver
28:45as pinturas que estão no alto.
28:52Eu fico pensando que assim como tem coisas
28:55que a gente coloca no outdoor,
28:57que a gente quer que as pessoas conheçam
28:59e tem o bilhetinho secreto que você passa
29:01só para quem está mais próximo de você,
29:03talvez a relação seja semelhante, né?
29:06Aquilo ali, o painel da Serra da Lua,
29:09talvez seja para dizer, olha,
29:11o dia inteiro você está chegando,
29:13essa área aqui é assim.
29:15E aí esse outro mais secreto,
29:17talvez é, querida,
29:19hoje não vai dar para passar na hora do almoço,
29:23uma coisa assim, né?
29:25Pensando no nosso mundo e tentando fazer uma comparação.
29:33Se você for a Monte Alegre,
29:35num sítio chamado Painel do Pilão,
29:38tem uma figura imensa
29:40que é como se fosse um quadrado
29:43e que foi os quadrados preenchidos por X.
29:46No entanto,
29:48olhando um cachimbo
29:51em cerâmica de Santarém,
29:53daquela região de Santarém que nós temos no Guild,
29:56é um cachimbo cerâmico
29:58que tem a forma de um jabuti.
30:01A barriga do jabuti
30:03são vários quadrados com X preenchidos.
30:07O que é isso?
30:09Eles representaram ali a barriga do jabuti?
30:15Por quê?
30:16O jabuti seria um animal importante
30:21a ponto de eles representarem?
30:23Isso é viagem,
30:25isso são hipóteses, entende?
30:28Eu não tenho como dizer.
30:29O que eu tenho?
30:30Fato.
30:31Uma representação na parede, assim,
30:34e um cachimbo representando um jabuti
30:38cuja barriga é o mesmo tema
30:41que está representado na parede.
30:43Tem relação?
30:45Não sei.
30:46Pode ser que sim, pode ser que não.
31:05Na Amazônia moderna,
31:07cortada por obras faraônicas,
31:09a marca do homem sobressai.
31:12Mas, ainda que a enorme floresta
31:14esconda bem suas velhas cicatrizes,
31:16ela sempre foi talhada pela mão humana.
31:20Os povos de Marajó
31:22floresceram na ilha por 900 anos.
31:25Até o início do século XIV,
31:27sua civilização transformou a ilha
31:30e, ao invés de se render à inconstância da natureza,
31:33sabe tirar proveito dela.
31:36Os marajoaras erguem grandes construções de terra,
31:40conhecidas como tesos,
31:42e inventam a piscicultura.
31:47Uma das perguntas que sempre se fez,
31:49que permeou as pesquisas que fizeram na ilha,
31:53era como que eles podiam ter sobrevivido
31:56durante tanto tempo nesse local,
31:58que era um local difícil de sobreviver.
32:01Como é que eles tinham desenvolvido
32:03essa cultura tão avançada?
32:05Eu vejo, desde a minha infância,
32:07que o Marajó sempre sofreu essa sazonalidade.
32:10Os marajoaras,
32:12visitando os sítios arqueológicos deles,
32:14os tesos,
32:16a gente vê que eles trabalharam
32:18em cima de toda essa dificuldade que eles tinham,
32:21da seca e da água.
32:24E as populações que habitaram o Marajó
32:27começaram a chegar no Marajó
32:29por volta de 5 mil anos antes do presente.
32:31São os sítios mais antigos que a gente tem.
32:33Tem sítios sambaquis, que ainda não estão
32:35completamente datados, todos eles,
32:37mas tem ocupações antigas,
32:39que remetem para essa data de 5 mil anos.
32:41E o Marajó,
32:43o Marajó é um dos sítios mais antigos
32:45que a gente tem.
32:47O Marajó é um dos sítios mais antigos
32:49que a gente tem.
32:51Por volta de 5 mil anos.
32:55Com o decorrer do tempo,
32:57eles foram aprendendo a conhecer
32:59essa ecologia do Marajó,
33:01que é uma ecologia tão dinâmica.
33:03E chega num momento
33:05em que eles têm
33:07um contingente populacional
33:09suficiente para eles começarem
33:11a manejar essa ecologia,
33:13que eles já percebem.
33:15Eu acho que outra coisa que é fundamental
33:17é a questão da intensificação da pesca,
33:19que a gente vê que é falada
33:21pelos viajantes
33:23que vêm para a Amazônia no século XVI
33:25que falam isso,
33:27que eles têm tartarugas em currais,
33:29que eles envenenam a água,
33:31que eles represam rios para pescar.
33:33Então eles estão intensificando a pesca.
33:35É a forma mais clara para mim
33:37de conseguir uma proteína
33:39em grande quantidade para alimentar
33:41uma população semelhante.
33:43Eu pesco aqui desde uns 20 anos,
33:45mais ou menos.
33:4720 anos de idade,
33:49eu começo pescando aqui.
33:51Mas a gente só pesca nesse período
33:53de outubro,
33:55porque a água já está mais baixa,
33:57onde é mais fácil a gente pegar
33:59o peixe,
34:01porque a água já está mais baixa.
34:03A gente só pesca nesse período
34:05de outubro,
34:07porque a água já está mais baixa,
34:09onde é mais fácil a gente pegar
34:11a água já está mais baixa,
34:13onde é mais fácil a gente pegar
34:15o peixe no lago.
34:17Aí já vem só para o outro ano.
34:19De ano a ano a gente pesca,
34:21três meses no ano.
34:25Existem lagos pequenos,
34:27lagos naturais na ilha,
34:29que são depressões, digamos assim,
34:31onde esses peixes ficavam presos.
34:33Eles notaram isso e começaram
34:35a aproveitar essas depressões.
34:37E quando eu falo em fazer manejo,
34:39é para cavar mais essas depressões,
34:41para transformá-la em depressões maiores,
34:43em poços mesmo, para reter os peixes.
34:45No momento que eles cavam isso,
34:47eles pegam esse sedimento que é tirado
34:49e colocam do lado,
34:51para construir uma plataforma para morar em cima.
34:53Às vezes eles desviaram
34:55cursos de rios para construir esses tesos.
34:57Então a gente tem vários casos,
34:59no Anajás, o teso dos bichos mesmo.
35:01O próprio teso é como uma barragem
35:03que foi feita para desviar o curso do rio,
35:05para diminuir o fluxo do rio
35:09e direcionar os peixes
35:11para uma espécie de curral,
35:13onde eles tinham condições
35:15de pescar mais favoravelmente.
35:19Sabe-se que essa sociedade
35:21começou a construir esses tesos
35:23há cerca de dois mil anos.
35:25Na verdade, em torno de 500 d.C.,
35:27eles já tinham vários tesos
35:29construídos em vários locais da ilha,
35:31principalmente na parte leste da ilha,
35:33que é a parte dos campos alagados.
35:35E duraram nesse local,
35:37construindo tesos
35:39e fazendo essa cerâmica
35:41por cerca de mil anos.
35:45A cultura marajoara
35:47não significa um povo de frente dos outros,
35:49mas significa uma mudança cultural importante
35:51que aconteceu em um determinado momento.
35:53Que esses povos que lá viviam antes,
35:55de maneira mais ou menos dispersa,
35:57começaram a se organizar,
35:59a viver nessas comunidades
36:01que passaram a praticar esse manejo.
36:03A partir desse manejo,
36:05surgiram algumas lideranças
36:07que tomaram a frente nesse processo
36:09e acabaram
36:11liderando a sociedade,
36:13constituindo uma casta
36:15de indivíduos diferenciados
36:17que detinham o poder político,
36:19que detinham o poder econômico
36:21e o poder religioso também.
36:23Em função dessas pessoas,
36:25começou a se produzir essa cerâmica
36:27para essas festas, esses rituais
36:29para garantir à população
36:31a segurança econômica que todos esperavam.
36:35Em cada um desses grupos de tesos,
36:37você tinha uma liderança
36:39que precisava de seguidores,
36:41precisava de gente para trabalhar
36:43nessas obras de terra.
36:45Então para eles era interessante
36:47ter esse pessoal com quem contar
36:49para fazer essas obras de terra
36:51e essas pessoas precisavam ser entretidas,
36:53elas precisavam ser protegidas.
36:55Então você tem o ritual também
36:57e o papel de manter a população unida,
36:59de criar uma coesão
37:01entre esses povos todos.
37:09As sociedades pré-colombianas
37:11amazônicas
37:13têm que ser consideradas civilizações.
37:15Não são culturas primitivas,
37:17não são coisas atrasadas,
37:19não é uma
37:23coisa para trás,
37:25o inferior da história ocidental
37:27e uma coisa que fica ao lado.
37:29É diferente,
37:31mas igual.
37:33Igual no sentido de
37:35quantidades de seres humanos,
37:37corpos humanos,
37:39dirigidos
37:41por uma organização sociopolítica.
37:43Igual no sentido de
37:45sofisticação,
37:47de engenharia,
37:49de conhecimento
37:51de natureza, de terra,
37:53o uso de terra,
37:55o manejo de terra, agrícola.
37:57Eles tinham conhecimento
37:59igualmente sofisticado
38:01do que as outras civilizações.
38:07E para entender essa história de populações
38:09que eram ágrafas,
38:11não deixaram nada escrito,
38:13é importante conhecer também essa herança
38:15paisagística. A gente come farinha de mandioca,
38:17toma sugo de caju, bebe açaí,
38:19come abacaxi,
38:21come milho,
38:23tomate, pimenta,
38:25um monte de coisa que faz parte da nossa vida
38:27hoje em dia,
38:29que são tão importantes
38:31para a nossa vida aqui no Brasil,
38:33são herança dessas
38:35populações. São coisas que foram
38:37criadas, manipuladas, inventadas por elas
38:39a partir dessa base natural.
38:41E essa abordagem paisagística permite
38:43a gente entrar,
38:45fazer uma história dessas sociedades
38:47a partir dessa perspectiva, que acho que é muito interessante.
38:51Música
39:17E pensar em todo o território
39:19que é explorado
39:21por uma única família
39:23ao longo das suas
39:25diferentes atividades cotidianas
39:27e rituais religiosos,
39:29colocar
39:31isso em termos de família,
39:33em termos de comunidade,
39:35e colocar isso numa escala
39:37mais ampla, a gente
39:39pode dizer com tranquilidade
39:41que toda essa floresta,
39:43ela foi manejada,
39:45foi manipulada, foi percebida,
39:47foi concebida
39:49por populações ao longo de toda
39:51essa história indígena, que é uma história
39:53que remonta a mais de 10 mil anos
39:55aqui na Amazônia.
39:57Música
39:59Bom, se havia
40:0110 milhões de pessoas dentro
40:03da Amazônia, eu vou te dizer
40:05que eram verdadeiros sábios.
40:07Porque
40:0910 milhões de pessoas no ambiente
40:11da Amazônia, e deixar aquela
40:13floresta rica, exuberante,
40:15é de uma
40:17sabedoria
40:19incalculável.
40:21Eu acho que nós precisamos
40:23resgatar esse conhecimento
40:25e aplicar essa sabedoria.
40:27Música
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