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  • 15/05/2025
03-Artes

Com Denis Vialou

Se o estudo da pré-história é um quebra-cabeça, quem dirá compreender o mundo imaginário dos nossos antepassados? Pistas não faltam.

É a explosão de cores e formas estampadas nos paredões de Peruaçu.

É o homem que se confunde com ave de rapina que envolve o vaso do xamã.

Mesmo depois de milhares de anos, a habilidade e a sensibilidade gráfica dos nossos primeiros artistas ainda impressionam.
Transcrição
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00:07Até a próxima!
00:30Se o estudo da pré-história já é um baita quebra-cabeça, como podemos compreender o
00:44mundo imaginário dos nossos antepassados mais distantes?
00:49Pistas não faltam na explosão de cores e formas estampadas nos paredões da pedra ou
00:55naquela carranca do cacique cavucada no granito da serra.
01:00E mesmo após milhares de anos, a habilidade e a sensibilidade gráfica de nossos primeiros
01:07artistas ainda impressionam.
01:10Agora, o que será que eles queriam dizer com seus traços arrojados e formas sinuosas?
01:20A única certeza que temos é que desde os primórdios da nossa cultura a vida não se
01:25resumiu apenas a caçar, coletar e plantar.
01:29Os nossos primos mais distantes também fizeram questão de representar o novo mundo, redesenhando
01:35seu universo com tinta, barro e pedra.
02:05Mesmo nós, como ocidentais, racionais, assim, dois mais dois igual quatro.
02:19Não seria um absurdo de pensamento isso?
02:24Não seria melhor de pensar que dois mais dois é igual ao que quiseram?
02:30Isso faz parte da arte da pré-história.
02:33É isso que é maravilhoso de descobrir na pré-história, essa amplitude enorme que
02:41nós temos através do imaginário que está produzindo imagens, seja na cabeça, seja
02:50nas paredes.
02:51A primeira sensação que eu tenho ao ver um sítio de arte rupestre, e dependendo claro
03:03do que está representado, mas na maioria das vezes é isso, é o meu espanto e a minha
03:07admiração pelo que está representado, pelo belo.
03:13Aí eu vou sentar, aí eu vou olhar os detalhes e começar a fazer essas perguntas.
03:20Como eles chegaram aqui?
03:22Por que eles chegaram aqui?
03:23Como fizeram isso?
03:25Qual a intenção?
03:26Até onde essas pinturas vão?
03:30Por que eles fizeram isso?
03:31Que tipo de material utilizaram?
04:02Aqui nós começamos a pesquisa nos anos 70 e a cada vez são novas descobertas, novos
04:10dados, de maneira que é uma região realmente privilegiada para a arqueologia.
04:15Nós temos vários resultados, hoje são 1.490 sítios que já estão cadastrados, dos quais
04:27mais de 900 com pinturas e gravuras rupestres, o que é algo extraordinário.
04:32A gente aprende tudo errado na escola.
04:49Quando eu estudei História da Arte, eu aprendi que era assim, os pré-históricos começavam
04:56primeiro desenhando as coisas mais simples, primeiro os bichinhos, aí depois eles foram
05:02ficando mais inteligentes, mais elaborados, e aí no final eles faziam as figuras mais
05:09abstratas, mais elaboradas, enfim, muito antes pelo contrário.
05:14Então, por exemplo, a tradição São Francisco, que é a mais antiga, ou uma das mais antigas,
05:23na região do Vale do Peruáçu, é de uma simetria de cores, de um jogo de cores fabuloso
05:33do ponto de vista da representação gráfica.
05:36No entanto, o que a gente observa é que as figuras que foram feitas posteriores, quer
05:43dizer, por grupos mais recentes, já necessariamente não apresentam no seu código uma elaboração
05:51gráfica e abstrata tão grande assim.
05:53O Peruáçu foi muito generoso com a gente, assim, ele permitiu a gente, partindo de determinadas
06:08abordagens em função da riqueza do material, pensar em novas abordagens, novas maneiras
06:13de analisar as pinturas, o Peruáçu é uma preciosidade, assim.
06:18E na medida em que a gente estava refinando essa distinção de estilos que se sucediam,
06:26a gente começou a atentar para alguns outros aspectos, um deles, que é bastante especial,
06:33eu acho que é o seguinte, no momento que novas figuras iam ser realizadas nas paredes
06:38dos sítios, elas já tinham outras figuras presentes ali, então, pintar novas figuras
06:44significa se relacionar com as figuras antigas também, e o Peruáçu permitiu para a gente
06:50entender, caracterizar diferentes comportamentos nesse sentido.
06:54Os autores das primeiras pinturas, as pinturas mais antigas, eles só pintaram em grandes
07:09abrigos, de grandes paredes verticais, bem iluminadas, piso plano, regular, e fora do
07:16cânion principal, assim, por exemplo.
07:19A gente consegue perceber que as pessoas estão escolhendo, que tem uma lógica que estrutura
07:27essa construção da paisagem através das pinturas, embora a gente não saiba quais
07:33motivos estão levando as pessoas a pintar e o que as pinturas significam, a gente consegue
07:38ter acesso a elementos da lógica de distribuição dessas pinturas naquele pedacinho do mundo ali.
07:45A arte, o PC, não nos dá resposta, como dizer, o que a humanidade nos diz?
07:51Tem muitas humanidades, no passado, no presente, de um lado do Mediterrâneo, do outro lado
07:58do Mediterrâneo, de um lado do Chuí, do outro lado do Chuí, então não tem a humanidade,
08:06talvez de um ponto de vista filosófico, e não tem a arte rupestre também.
08:12Tem uma grande diversidade de grafismos feitos em momentos diferentes para finalidades diferentes
08:21e que levam mensagens, vamos dizer, informações diferentes.
08:27O nosso papel, primeiro lugar, é entender que se trata de um código cultural daquela
08:35cultura do passado, que certamente o seu significado estaria vinculado aos mitos de
08:42origem, à cosmologia, enfim, a toda a história intrínseca daquele grupo, a história cultural
08:51daquele grupo.
08:52E, nesse sentido, para nós seria bastante complicado afirmar algo de concreto.
08:59No entanto, podemos sim trabalhar com várias das variáveis que a arte rupestre nos apresenta
09:08hoje, que são os seus significantes, não o seu significado, ou tentar interpretar nesse
09:15sentido, dizer, ah, eles queriam dizer isso, desenha-se um animal, ah, não, estão desenhando
09:21um animal porque queriam caçar o animal, necessariamente não.
09:25Nós vemos também muitos casos de caçadores e coletores que não desenham animais.
09:33Eu não vejo nenhuma maneira razoável, a partir do que a gente dispõe hoje, de tentar
09:40acessar os significados das pinturas.
09:42É muito difícil entender a quais aspectos da vida das pessoas elas estavam relacionadas.
09:49Os conteúdos, o que eles estariam dizendo, nos dizendo, eles não estavam dizendo nada,
09:54eles não estavam falando para nós, eles estavam falando nos seus contextos.
09:58Eles poderiam estar falando uns com os outros, ou com outros seres, de outras naturezas,
10:05mas que integravam lá os mundos deles.
10:10Tem um momento em que a representação humana, ela se estendeu por uma imensa área geográfica
10:18e foi um tema comum em todas as culturas, ou em grande parte das culturas, tanto ceramistas
10:27quanto culturas que fizeram arte rupestre, que podem ter sido as mesmas, inclusive.
10:48Quando eu estudei a iconografia da cerâmica marajoara, eu estava interessada, na verdade,
10:54em busca de significados.
10:55Eu queria saber o que eles estavam representando ali.
10:58Porque era uma cerâmica que a gente via que tinha umas representações mais naturalistas,
11:02representações de animais, de humanos, mas tinha muita coisa que era...
11:08representações geométricas, que eu estava interessada em saber o que eles estavam representando.
11:14Então, se dizia que era como se fossem enchimentos, assim, tem uma urna, tem as representações
11:20das características humanas principais e depois tem aqueles enchimentos.
11:24Então, quando eu comecei a estudar, eu estava mais interessada nesses enchimentos, na verdade,
11:28nessas formas geométricas.
11:30Primeiro fui identificar quais eram os animais representados, verifiquei que eram animais
11:35da ilha mesmo, animais que são abundantes na fauna da ilha, principalmente cobras,
11:40lagartos, jacarés, tartarugas, e comecei a comparar essas representações realistas
11:45com as representações mais geométricas.
11:47E verifiquei que havia uma correspondência de estrutura entre essas representações.
11:51Então, na verdade, o que eles estavam fazendo na cerâmica era esses mesmos animais, essas
11:55mesmas pessoas que eles estavam representando de forma realista, eles estavam representando
11:59também de forma metonímica, às vezes, só uma parte do animal que eles estavam representando.
12:06Então, eles representam muito a cobra, só pela parte sinuosa do corpo da cobra, às
12:10vezes com uma cabeça triangular também, que é a jararaca.
12:36A partir do ano 1000, a gente tem toda uma tradição de se enterrar mortos dentro de
12:42urnas funerárias que são antropomórficas, que representam corpos.
12:46A gente tem urnas cerâmicas e enterramentos em urnas cerâmicas antes, mas que são grandes
12:52vasos, na verdade, com uma decoração aqui, até uns tem umas cabecinhas, como na fase
12:58paredes.
13:01Mas é, por exemplo, com a tradição polícroma, a partir do ano 1000, um pouco antes, que
13:05a gente começa a ter verdadeiras esculturas de corpos humanos.
13:09Então, a ideia de que a cerâmica realmente pode ser um novo corpo para o morto.
13:17Tem alguns objetos, a maneira como eles são feitos, eles atraem o seu olhar, de modo
13:21que você se demora mais para ver o corpo.
13:26E quanto mais você se demora, mais coisas você vê.
13:30Então, existem uma série de técnicas para criar essas armadilhas.
13:34O material marajoara é repleto dessas armadilhas do olhar.
13:42Tem terminações, todas essas espirais e flechas que a gente fica seguindo para tentar
13:46encontrar o corpo.
13:48Então, a gente tem uma série de técnicas para criar essas armadilhas.
13:53O nosso olhar é abduzido, que é outro termo do Alfred Gell.
13:57E, à medida que a gente vai prestando cada vez mais atenção, a gente vai vendo outras
14:01coisas.
14:07O corpo da una é o corpo de uma ave, uma coruja ou uma ave de rapina, que é humanizado.
14:13Então, o corpo da una é o corpo de uma ave, uma coruja ou uma ave de rapina, que é humanizado.
14:19Então, é uma grande coruja, mas que usa brincos, usa largadores de orelha, tem um
14:25peitoral, um inalador de osso, todo trabalhado.
14:31Então, é uma coruja se transformando num ser humano, um ser humano se transformando
14:35em coruja.
14:37Algum simbolismo ali em relação a alguma vida pós-morte devia ter.
14:43E, justamente, o corpo da una é o corpo de uma ave, uma ave de rapina, que é humanizado.
14:48E, justamente, urnas que, no corpo dessas urnas, cheios de armadilhas do olhar, que
14:54se você presta um pouquinho mais de atenção, você vê um ser, às vezes eles estão de
14:58ponta-cabeça, às vezes eles estão meio escondidos.
15:02Então, tem toda uma maneira de compor ali aquela decoração do corpo maior da una com
15:08esses jogos perceptivos.
15:10Então, isso, acredito, é um elemento ritualístico a mais.
15:15Devia ter danças, devia ter cantos e outros elementos sensoriais nesse ritual, que faziam
15:23com que as pessoas vissem coisas.
15:25Mas a cerâmica, com certeza, devia ser uma peça fundamental.
15:45Os índios tapajônicos, os animais são facilmente observados, perceptíveis.
15:53Então, a gente visualiza com rapidez o tipo de animal que está inserido, que está agregado
15:59naquela peça.
16:01Já diferente do marajoara, os desenhos do marajoara escondem detalhes, figuras, que
16:10a gente, mesmo estando acostumado a ver com frequência, muitas vezes não percebe.
16:16Precisa, às vezes, do auxílio de um pesquisador que nos orienta, nos diz que tipo de desenho,
16:22que tipo de animal está embutido naquele desenho e que a gente não percebe com facilidade.
16:32Não são só duas, não é só de um lado você vê uma coisa, do outro você vê outra,
16:36às vezes são quatro.
16:39Você vai virando a peça e vai vendo uma coisa completamente diferente.
16:43Você pensa, para você fazer isso, você precisa ser um artista incrível para começar.
16:49O projeto de design de um objeto desses é incrível.
17:09O primeiro relato da passagem dos europeus pela Amazônia, o Carvajal já descreve as
17:15guerreiras amazonas e daí surge a lenda do muiraktan na Amazônia, que é esse artefato
17:21que é associado à fertilidade.
17:25Um indivíduo que portasse um muiraktan na Amazônia, ele provavelmente seria um grande
17:29chefe, um líder regional e tal, porque era uma coisa muito rara, era um objeto de muito
17:35valor simbólico.
17:39As primeiras tentativas de entender essa presença do muiraktan, elas colocaram passagens
17:45fantasiosas, algumas descrições de cronistas dizem que os muiraktans surgiam porque as
17:51amazonas mergulhavam no lago aqui na região entre o Inhamundá e o Trombetas e da lama
17:57desse lago, quando ela era exposta ao ambiente, essa lama se petrificava e se petrificava
18:03transformada nos muiraktans.
18:09Para algumas das primeiras pesquisas, a única possibilidade que você tinha de produzir
18:23os furos milimétricos dos muiraktans seria possuindo algum tipo de metal que fosse rígido
18:31o suficiente para produzir aqueles furos.
18:37Além disso, aqui na Amazônia é rara a presença de matéria-prima de pedra verde, mas na América
18:43Central é bastante comum.
18:45Na América Central a gente tem populações que construíram pirâmides, que construíram
18:51centros urbanos mais próximos do que a gente considera como coisas sofisticadas hoje em dia.
19:00Talvez associada também a um preconceito que a maioria das sociedades nacionais tem
19:06com os povos indígenas, com os povos nativos da América, de pensar que os nativos eram
19:12inferiores aos europeus que chegaram depois e tal, fez com que várias pessoas levantassem
19:18a hipótese de que esses muiraktans vieram da América Central construídos lá num contexto
19:25de civilização mais sofisticada e que eles vinham parar aqui por conta de coisas que
19:29os nativos da América Central tinham interesse em trocar com os povos da Amazônia.
19:37Quando nós viemos pra Santarém, aqui na área da universidade, é parte do sítio
19:43do Porto, um sítio conhecido aqui na região de Santarém, um sítio que foi estudado pela
19:47Ana Roosevelt.
19:49Com a facilidade de ter o laboratório de arqueologia aqui no próprio local do sítio,
19:54então a gente resolveu não descartar mais o solo escavado em campo.
19:58A gente resolveu coletar 100% da terra que a gente estava escavando e deixar pra processar
20:02essa terra só no laboratório depois, usando uma sequência de peneiras com malhas muito
20:08finas até chegar numa malha de 2 milímetros.
20:12Por exemplo, aquela pecinha que provavelmente é a broca pra fazer o furo do muiraktan numa
20:21peneira normal, da maioria das metodologias arqueológicas, ela passaria no furo da peneira
20:25e a gente talvez descartaria essa peça sem saber que ela existia no contexto.
20:31A gente vê que elas foram usadas pra perfurar.
20:33Se você olha as marcas de uso, elas têm ranhuras desse movimento em círculo, que
20:37provavelmente está relacionado com o movimento de vai e vem.
20:41E a grande questão, que sempre atribuía origem externa, era como é que um povo sem
20:47vida pode furar uma rocha tão dura como as pedras verdes, sem ter metal.
20:53Nós percebemos, assim, que mesmo a dureza da pedra verde sendo maior, no nosso caso
20:59do feu de espato potássico sendo maior que a da matéria-prima da broca que a gente possuía,
21:05se você adicionar areia, areia muito fina, como abrasivo, a eficiência desse processo
21:11aumenta muito, ela potencializa muito.
21:16Com toda a nossa falta de habilidade, nós conseguimos produzir furos equivalentes aos
21:21furos dos muretãs de pedra verde em cerca de duas horas.
21:25Então, de uma certa maneira, a gente desmistificou um pouco essa coisa da tecnologia impossível
21:31para os povos da Amazônia.
21:34Outra coisa interessante é essa coisa da representação dual na cerâmica santarena.
21:39É outra coisa que já foi amplamente discutida aqui.
21:42Dificilmente um símbolo, um animal, um humano representado na cerâmica santarena significa
21:48só isso.
21:49Se você muda ele de posição, sempre vai ter mais de uma figura representada.
21:53O que a gente chama de dualidade.
21:55O que a gente chama de dualidade é uma figura que é representada por duas coisas.
22:00A gente começou a olhar para alguns muretãs que estão em coleções arqueológicas no
22:04Brasil, fora do Brasil, e a gente começou a perceber que esse dualismo também está
22:09presente na concepção morfológica do muretã.
22:12Então, não é só o consumo do muretã.
22:16A forma de construir o muretã está ligada à cosmologia desse povo.
22:20Então, hoje a gente não tem mais uma forma de construir o muretã.
22:24A forma de construir o muretã está ligada à cosmologia desse povo.
22:28Então, hoje a gente não tem mais dúvidas de que se as amazonas guerreiras lendárias
22:35eram consumidoras de muretã, certamente os tapajós eram os artesãos delas.
22:41Isso a gente tem evidências muito concretas aqui hoje em dia.
22:46Nas lapas e paredões do interior do Brasil, flagrantes de um tempo esquecido saltam da
22:52rocha aos nossos olhos.
22:55Da caça ao coito, da farra à guerra, nenhum detalhe da vida cotidiana escapou do olhar
23:01dos nossos primeiros artistas.
23:03Mas sua arte também nos faz imaginar o universo que representaram, e que hoje em dia são
23:10E sua arte também nos faz imaginar o universo que representaram, peça por peça, em cores,
23:18figuras e lampejos.
23:23Essa diversidade cultural indígena maravilhosa que a gente tem no cenário contemporâneo
23:28era um fenômeno histórico antigo.
23:31Se você olha as pinturas rupestres que estão sendo feitas no Brasil, em Minas Gerais,
23:36aqui em Goiás e em outras áreas do Cerrado, suponhamos aí no Holoceno Médio, uns quatro,
23:43três, quatro mil anos atrás, você vai ter uma diversidade cultural muito claramente
23:50expressa nas pinturas também.
23:52Tem muita gente diferente, com estéticas diferentes, com interesses diferentes e disposições
23:58para condutas diferentes.
24:00Você tem cenas da vida de todo dia, você tem cenas de sexo, cenas de parto, você tem
24:07cenas de caça, você tem cenas de luta.
24:11Agora essa luta pode ser uma luta mesmo, mas pode ser também as lutas cerimoniais
24:16que as tribos indígenas tinham.
24:18Posso dizer uma coisa muito fácil que tem na região da Iguaçanta.
24:22Por exemplo, você tem um momento relativamente recente, que você tem apresentações humanas,
24:27preferencialmente, e elas costumam se organizar em espécies de processões.
24:33Tem uma processão que você tem as mulheres e os meninos, e as mulheres e os meninos
24:38se organizam em espécies de processões.
24:42E elas costumam se organizar em espécies de processões.
24:46Tem uma processão que você tem as mulheres em cima, os homens embaixo e ambas se dirigem
24:51para uma cena de parto, por exemplo.
24:54Será que isso é a representação de uma coisa que ocorreu uma vez?
25:00Será que é a projeção de um mito?
25:03Será que é sei lá o quê?
25:06A gente não sabe o significado.
25:08Nós temos os machos e as fêmeas e o conjunto vai dar o nascimento
25:14e isso é projetado na pedra.
25:31O que mostra para a história, que nos interessa,
25:34que o fenômeno é universal, é mundial,
25:37e que os homens da pré-história já souberam passar da realidade
25:46à virtualidade, ao surrealismo, ao imaginário puro.
25:52É Santa Irina com os macacos, mas no mundo inteiro se encontra isso.
25:57Tem macacos que não são macacos.
26:00Tem macacos, verdadeiros macacos.
26:03Só que eles têm, por exemplo, as mãos invertidas, os pés anormais,
26:09tem o rabo fazendo como um alvo, tudo isso.
26:12Então eles inventaram todo um simbolismo imaginário sobre os macacos
26:19com uma relação com os homens.
26:22Entende macaco que é o nosso primo mais querido?
26:26Com toda a riqueza de construção, de representação que cada um de nós tem,
26:32seja durante o dia de uma maneira consciente,
26:36seja durante a noite de uma maneira não consciente.
26:41Faz mergulhar na realidade, mas faz mergulhar muito mais longe do que a realidade.
26:50Esse painel de gravuras também apresenta características que reforçam
26:56que essas inscrições são dos povos de E.
26:59As linhas entrecruzadas que aparecem em vários pontos do sítio
27:05também aparecem na cerâmica.
27:09Um dos motivos mais comuns da decoração de cerâmica G,
27:12da cerâmica Taquara e Tararé, são essas linhas entrecruzadas.
27:16Aqui nesse ponto também dá para ver um pouco da técnica para fazer essa inscrição.
27:24É retirada uma casca, que é uma casca que é usada para fazer a inscrição.
27:33É retirada uma casca do arenito, fazendo uma moldura com picoteamentos.
27:40Dá para ver ainda a marca desse picoteado.
27:44É retirada essa casca.
27:46Então o arenito fica mais rosa nessa parte interior.
27:51E daí dentro dessa moldura, que está com uma cor mais viva,
27:54começam-se a fazer as incisões.
27:57Aqui tem um exemplo de como era a coloração do arenito, da rocha,
28:01quando a inscrição foi feita.
28:03Esse tom de cor bastante viva.
28:06E aí tem os cristais dentro do arenito que brilham.
28:09Então imaginar o pôr do sol acontecendo e batendo nessa rocha e brilhando,
28:17dá uma ideia de como era a inscrição.
28:20Mesmo sendo macia, ela é bastante dura.
28:23Então a pessoa tem que fazer movimentos contínuos e durante muito tempo.
28:29Talvez até entrando em transe, para saber como é o ritual.
28:34Com música, tomando bebidas,
28:38ou seja, a pessoa tem que fazer movimentos contínuos durante muito tempo.
28:45Até conseguir acessar, fazer a gravura e acessar esse mundo
28:50desses entes que estão sendo representados aí.
28:53As gravuras, como no caso dessa ave que está sendo representada aqui,
28:58ou do felino que está sendo representado aqui.
29:01Então os índios dessa região, eles lembram bastante da história do filme
29:04de que está acontecendo na gamejinha.
29:06Então a gente vai ver um pouco mais de ossos,
29:08mas também da história de que está acontecendo na jangada.
29:10Mas o que é isso, dez mil anos atrás,
29:15aquelas garotinhas que estavam ali naquelas carreiras,
29:19eles estavam batendo nas montanhas,
29:22e eles já tinham um fantasma de que eram ali os índios.
29:25Então, os índios, essa região do cerrado, o litoral todo do Amapá, ele é um litoral aberto,
29:34não é como a floresta amazônica típica, que tem a copa das árvores fecha plenamente céu.
29:41Eles têm muito mais intimidade com o céu do que outros grupos que estão mais para o interior,
29:47dentro da selva amazônica mesmo.
29:49Então, acho que isso propiciou um grande conhecimento astronômico
29:53que está marcado nesses sítios cerimoniais.
29:57E é uma região vazia do ponto de vista de sítios de habitação.
30:01E é justamente ali, junto do rio Araguari, que é onde está a pedra do Índio,
30:07é um afluente do Araguari, ela parece ser marcada como uma região de fronteira.
30:14Então, esses sítios cerimoniais estão marcando possivelmente pontos de encontro
30:18desses grupos separados pelo rio Araguari, que ali se juntam para fazer cerimônias.
30:34Monte Alegre surpreende em vários aspectos em relação às pinturas.
30:38O primeiro deles é a diversidade dos locais onde aparece.
30:44As pinturas estão em paredões, a céu aberto, nesses paredões em locais bastante altos
30:52e com figuras muito grandes e com cores ainda muito vivas
30:56que permitem serem vistas desde muito longe.
31:02Da base da serra, por exemplo, você é capaz de distinguir algumas figuras
31:06de tão grandes e com as cores ainda muito vivas.
31:12A outra coisa é algumas figuras em cavernas.
31:16A maioria está na parte que recebe a luz, mas há figuras no interior de cavernas
31:24onde a gente só consegue ver as figuras que estão na parte que recebe a luz.
31:30Há figuras em cavernas onde a gente só consegue ver se usar uma lanterna,
31:34ou seja, elas estão em áreas de penumbra.
32:00O perspectivismo ameríndio.
32:04O que a gente traduz que seria uma teoria antropológica, hoje conhecida,
32:10é possível se transformar. Os animais se transformam.
32:16O que a gente traduz que seria uma teoria antropológica, hoje conhecida,
32:22é possível se transformar. Os animais se transformam.
32:26O que a gente traduz que seria uma teoria antropológica, hoje conhecida,
32:30é possível se transformar. Os animais se transformam em gente
32:34e as pessoas se transformam em animais.
32:38Existe uma transformabilidade dos seres, mas isso não é para qualquer um.
32:44Isso é atributo principalmente do xamanismo.
32:50Isso é visível na cerâmica de Santarém.
32:54Estatuetas de pessoas que são metade gente e metade animal.
33:02Ou em processo de transformação corpórea.
33:06Isso é algo muito interessante e que está, de alguma forma,
33:12distribuído na Amazônia como um todo, que tem uma expressão artística,
33:18mas em Santarém é muito nítido.
33:23Ele é um fragmento de um vaso de gargalo, que a gente chama.
33:28É um vaso bem pequeno, o rosto, aqui as mãos ou patas,
33:36mas é um animal que a gente não reconhece qual,
33:40mas ele tem traços humanos.
33:44É uma figura humanizada.
33:47Então a cerâmica, a simbologia da cerâmica é uma porta
33:53para a gente poder explorar essas visões de mundo
33:56através da metodologia da iconografia.
34:01A gente acredita que pode acessar esses fragmentos
34:06do que seriam essas visões de mundo desse grupo
34:10e a importância do xamanismo para esse grupo.
34:47As tangas eram utilizadas para vestir mesmo,
34:51eu acho que em apenas algumas ocasiões,
34:53porque não é uma coisa muito confortável.
34:55Então eu acredito que em alguns rituais eles utilizavam as tangas.
34:58E o que é interessante nas tangas é que a gente sempre pensou assim,
35:02as tangas decoradas deviam ser para as mulheres mais importantes,
35:05as tangas lisas para as mulheres comuns.
35:07Mas é justamente o contrário.
35:09Talvez a gente não tenha visto as tangas decoradas
35:14Talvez as tangas sem decoração sejam para mulheres casadas
35:18e as tangas decoradas para meninas em rituais de puberdade
35:21que ganhavam essas tangas.
35:23Porque todas as urnas mais decoradas, maiores, mais bonitas
35:27tem tangas lisas dentro, não tem tangas decoradas.
35:43A CERÂMICA MARAJOARA
35:59Na Cerâmica Marajoara tem muitas estatuetas
36:02e eu acredito que lá em Marajó a gente estava tendo alguma coisa desse tipo.
36:06Tem um ritual para fazer, fazemos um monte de estatuetas
36:10de ajudantezinhos do xamã.
36:14E essas estatuetas são decapitadas depois, não todas.
36:17Agora, o que sempre chamou muita atenção nessas estatuetas
36:21é que elas representam corpos humanos acocorados,
36:25provavelmente mulheres dando a luz, em posição de parto.
36:29Algumas são grávidas e tal.
36:32Mas também elas são feitas de uma forma fálica.
36:35Então o corpo do objeto representando o pênis
36:39e as pernas, os...
36:44Enfim, o saco é uma coisa muito...
36:48Você vê que tem um conhecimento da anatomia do corpo humano muito preciso, às vezes.
36:53E é um órgão que não só se transforma fisicamente,
36:56mas ele tem coisas dentro, ele tem essa capacidade de se comunicar
37:00com dentro e fora, com o sêmen.
37:03Essas estatuetas são estatuetas chocalho, tem coisinhas dentro.
37:07Então pode ser uma analogia também ao sêmen.
37:10Essas pedrinhas, essas pedacinhas de cerâmica que fazem barulho.
37:15Eu queria entender como elas eram feitas, essas estatuetas.
37:19E, sobretudo, o que era concebido primeiro?
37:24Era o corpo humano ou era o falo?
37:27Era um pouco essa ideia, para tentar entender a essência delas.
37:31E aí eu fiz alguns raios X, fiz raios X de seis peças.
37:35E também para entender como que as pedrinhas dentro,
37:38se elas se comunicavam, a parte das pernas ou não.
37:41Enfim, como que era, se era aberto, se era tudo oco,
37:45se tinha separações lá dentro.
37:47E aí, para minha grande surpresa, algumas delas, não todas,
37:51quando a gente vê a parte interna, parece que elas foram moldadas
37:55num falo humano, porque é uma forma muito semelhante.
37:59Inclusive na proporção.
38:01Então, o que eu percebi é que elas primeiro são construídas como falos,
38:05e depois esses falos são humanizados.
38:07Então, primeiro se constrói um falo de cerâmica, oco,
38:12e depois se coloca, então, olho, bracinhos, perninhas, umbigo,
38:18mamilos, decoração, pintura corporal.
38:22Depois, então, são falos humanizados.
38:31MÚSICA
38:54Então é assim que a gente trabalha, por meio das analogias etnográficas.
38:58E o que a gente percebe é que há, de alguma forma, uma continuidade
39:03entre o modo de pensar dos grupos indígenas pré-coloniais
39:10e dos grupos indígenas atuais.
39:13O que a gente tem é transformações.
39:15Esses mitos e essas concepções são guardadas, mas elas se transformam.
39:21Assim como as expressões artísticas.
39:24Hoje, o que prevalece na arte indígena é a arte abstrata.
39:31Enquanto que aqui é a figuração.
39:34É o tempo todo a figuração.
39:36Aliás, a figuração explícita,
39:38que uma pessoa menos treinada é capaz de olhar para esse vaso e dizer
39:41isso é um jacaré.
39:42MÚSICA
39:48O conserto de arte em arqueologia é bastante polêmico.
39:52Tem pessoas que acham que a gente nem deve usar esse conceito
39:55por questão de populações que a gente não conhece,
39:58que a gente nem sabe se eles tinham esse conceito de arte.
40:02Mais recentemente, a gente tem aprendido que,
40:05se a gente também negar a essas populações a ideia de expressões artísticas,
40:11a gente está perdendo uma grande parte do que eles produzem culturalmente
40:17que tem muito a ver com a identidade desses povos.
40:20Então, o conceito de arte está sendo recuperado dentro da arqueologia em geral
40:24e tenho tentado explorar um pouco essas expressões artísticas
40:29para a gente tentar entender um pouco melhor aspectos ideológicos
40:34mesmo dessas populações.
40:37MÚSICA
40:41As mensagens dos artistas do nosso passado podem fugir da nossa compreensão.
40:46Afinal, a pré-história é o mundo anterior à língua escrita.
40:52A nós resta o privilégio de redescobrir, contemplar e, sobretudo,
40:58se surpreender com a criatividade milenar desses que pensavam muito além das origens.
41:05No próximo capítulo, mergulhamos mais fundo na sociedade de artistas
41:10que era também dotada de engenheiros, estudiosos do seu tempo,
41:14que sabiam mobilizar comunidades inteiras para erguer movimentos.
41:19A gente vai falar um pouco mais sobre isso no próximo capítulo.
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