Sozinha, a Dona Lúcia sorve a sua habitual sopinha. É Natal, mas para si, este ano, longe dos netos, do filho, da nora, a consoada é, afinal, um serão sem gestos concretos, sem o brilho de outrora.
Dizem que é de uma temível praga que por aí anda; mas Dona Lúcia vê, branda, através do pano com que a obrigam à mudez, que os outros morrem diariamente, como sempre morreram, com a mesma timidez.
Muda-se-lhe o mundo, como se muda o mundo ao mundo - que a solidão com que a matam é contagiosa apenas nos corações! Pois sempre que a crueldade quer e o Amor se entrega a quarentenas - obscenas! - inteiras nações, das grandes às pequenas, se oferecem à morte.
Mas a morte que mudou o mundo de Dona Lúcia neste Natal, como afinal mudou o mundo - daquele mundo que por bem se recusava a mudar! - não foi a morte da praga que se apregoa, mas a morte do seu cheio e caloroso lar. Morte pequena, comparada; que a morte, por sua impiedade, sabe ela em seus longos anos, tem roubado mais vida ao mundo por actos insanos e pela fome que por qualquer enfermidade!
Dona Lúcia bebe o que resta da sua sopinha habitual e triste. A consoada subsiste num dia indiferente, imposto por quem quer que o amor não tenha nada. Pois «o medo vai ter tudo», leu ela nos versos não-tão longínquos de Alexandre O'Neill, e a doença que é muito mais da alma que do corpo, essa, é realmente vil, se conseguir transformar-nos todos, como profeticamente escreveu, nesses relatos, em muito menos que gente... em pouco mais do que ratos.