A cidade fictícia de Urânia, onde o mundo teria começado e pode acabar, é o centro de “Boca do Mundo”, romance de estreia da cearense Dia Bárbara Nobre.
Narrado por uma serpente que vive na torre de uma igreja, o livro explora temas como espiritualidade, memória e o poder simbólico dos lugares. “Urânia nasceu de uma encruzilhada”, revelou a autora ao podcast Pensar, do Estado de Minas, apresentado por Carlos Marcelo.
O espaço, inspirado em um povoado do Vale do São Francisco, carrega forte carga religiosa e cultural: “A encruzilhada é um símbolo fortíssimo dentro da mítica religiosa. É um lugar de encontros”.
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#BocaDoMundo #DiaBárbaraNobre #Romance #Literatura
Narrado por uma serpente que vive na torre de uma igreja, o livro explora temas como espiritualidade, memória e o poder simbólico dos lugares. “Urânia nasceu de uma encruzilhada”, revelou a autora ao podcast Pensar, do Estado de Minas, apresentado por Carlos Marcelo.
O espaço, inspirado em um povoado do Vale do São Francisco, carrega forte carga religiosa e cultural: “A encruzilhada é um símbolo fortíssimo dentro da mítica religiosa. É um lugar de encontros”.
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CriatividadeTranscrição
00:00Olá, eu sou Carlos Marcelo e este é o podcast do Pensar do Estado de Minas,
00:04o seu espaço para ideias, livros e discussões da atualidade.
00:09A gente hoje tem o prazer de receber a escritora cearense Dia Bárbara Nobre,
00:13que está aqui com a gente e vai conversar sobre o seu livro recém-lançado,
00:17Boca do Mundo, e também sobre a literatura brasileira contemporânea.
00:20Muito obrigado por estar aqui com a gente, Dia, é um prazer.
00:23Eu que agradeço, Carlos, pelo convite.
00:25Estou muito feliz de estar aqui, nesse estado maravilhoso, no Estado de Minas,
00:30que é um jornal também muito legal.
00:32E você que está morando no Estado de Minas Gerais, né?
00:35Isso.
00:36Você passou um tempo morando em Belo Horizonte e agora está de mudança para Imores, é isso?
00:40Isso, a gente está indo para Imores agora, que é nordeste de Minas.
00:45E como é que foi o seu estado em Belo Horizonte?
00:47Antes de a gente começar a falar de literatura, o que foi mais marcante nesses quatro meses?
00:50Eu vou te dizer que eu estou um pouco triste.
00:52Sim, imagina.
00:53Foi pouco tempo, eu acho, mas foi muito legal, assim.
00:57Eu acho que uma das coisas que eu mais gostei aqui foi de...
01:01Acho que aqui tem uma...
01:02Para uma capital do Sudeste tem uma sensação de segurança muito boa.
01:07E eu gostei muito, eu gostava muito de caminhar aqui pelas ruas, assim.
01:10Então, eu estava aqui na Lourdes, né?
01:13E então, assim, ia para Savar, assim...
01:16Frequentou a Rua das Livrarias ali?
01:17Rua das Livrarias, tudo a pé.
01:20Fiz muito, eu acho que eu andei muito aqui, assim.
01:23Porque eu fiz tudo que eu podia fazer, eu fazia a pé.
01:25Eu acho que BH é uma cidade muito propícia para a gente caminhar.
01:29Eu gosto muito de caminhar, de observar as coisas.
01:33Então, é uma cidade muito arborizada, pelo menos nessas áreas, né?
01:38Então, para mim, isso foi muito legal, uma das coisas.
01:40Outra coisa, eu encontrei muitas pessoas legais aqui também, né?
01:46Tanto nas livrarias, a Livraria do Belas, que eu fiz um aponte muito legal com o Paulo, que trabalha lá.
01:53Foi um espaço que eu gostei muito de frequentar.
01:56As Livrarias da Savar também.
01:59Então, eu acho que...
02:00E o Mineiro, gente, pelo amor de Deus, né?
02:02O Mineiro é muito gentil.
02:04Assim, eu fiquei muito pressionada, assim, em alguns momentos.
02:08Porque, pô, a gente vem do Nordeste, né?
02:11A gente é um pouco mais, assim, direto, digamos assim.
02:15E o pessoal, eu achei muito gentil.
02:18E eu não poderia deixar de falar da comida.
02:21Ainda bem que eu caminhei muito, porque eu também comi muito.
02:25Pois é, mas então, que seja...
02:26Você vai para Imores, que é a terra de Sebastião Salgado, né?
02:29Isso.
02:30O Zé Rezende Jr. é um grande escritor mineiro também, de lá.
02:32Você tem também uma tradição cultural muito forte.
02:34Mas já...
02:34Lá produz café também, que eu já soube.
02:36Isso, exatamente.
02:37Tem várias coisas legais.
02:38Mas você vai continuar voltando, certamente, a BH também.
02:40Ah, sim.
02:41Frequentando aqui a Rua das Livrarias e todos os espaços culturais da cidade.
02:44Mas a gente precisa falar um pouquinho da tua história.
02:47Você é cearense de Juazeiro do Norte, né?
02:50Na região do Cariri.
02:51E você é formada em história.
02:53Você é historiadora.
02:54Lançou antes desse romance que a gente vai conversar sobre ele aqui.
02:59Boca do Mundo, esse que está aqui com a Bíblia, com a Dia.
03:02Você lançou uma coletânea de contos.
03:05No útero não existe gravidade, é um nome forte.
03:08Que foi finalista do Prêmio Mix Literário em 2011.
03:112021.
03:122021, perdão.
03:13E no ano passado, ano passado saiu essa coletânea, né?
03:16Do Dia Escuro.
03:17Contos inquietantes de autoras brasileiras, entre os quais está a Dia Nobre e outras autoras contemporâneas.
03:26E a gente vai falar também sobre esse seu trabalho.
03:28Que aí é um trabalho de encomenda, que acho que muda um pouco em relação à própria gênese do livro.
03:33Mas eu acho que a gente tem que começar por esse mundo que você inventou.
03:36essa cidade de Urânia, que tem uma peculiaridade muito forte.
03:43Eu queria então que você falasse para quem está acompanhando o nosso podcast,
03:46o que é que tem Urânia de diferente de outras cidades.
03:49A sua Macondo, digamos assim.
03:50A cidade que você imaginou.
03:53Então, é que como você falou, eu sou de Juazeiro do Norte, né?
03:55Mas eu saí de lá aos 22 anos.
03:57Eu fiz minha graduação lá.
03:59E depois eu rodei bastante.
04:02Eu morei no Rio Grande do Norte, eu fiz mestrado na UFRN.
04:06Aí morei um tempo em Brasília, durante o mestrado.
04:09Quase fiz doutorado em Brasília, mas aí decidi ir para a UFRJ.
04:13Então, morei no Rio, morei em São Paulo.
04:15Morei fora do Brasil, voltei.
04:18Aí fui parar no sertão do Pernambuco, porque eu fiz um concurso.
04:22Já estava com doutorado e eu fiz um concurso para professor universitário.
04:26E morei lá os últimos nove anos.
04:28Em qual cidade?
04:29Em Petrolina.
04:30Em Petrolina.
04:30Bem no sertão mesmo.
04:31Bem no sertão mesmo.
04:33Então, vocês me ouviram falar sobre caminhar nas ruas, porque eu sentia muita falta.
04:38Porque Petrolina é uma cidade muito quente e pouco arborizada.
04:41Então, não tinha como caminhar nas ruas.
04:43É muito difícil.
04:46Então, eu rodei bastante.
04:48E aí eu tenho várias referências de vários lugares.
04:52E os lugares para mim são muito importantes.
04:55O espaço para mim é muito importante.
04:57E eu acho que isso tem a ver tanto com a minha pesquisa, a pesquisa da minha vida, do meu doutorado, quanto com o que aparece em boca do mundo.
05:07Porque quando eu penso o espaço, eu não penso o espaço como um mero cenário.
05:12Eu acho que o cenário, o cenário não, desculpa.
05:14O espaço, ele é um personagem também.
05:17E no espaço, a gente também muda.
05:21Tem um escritor argentino que eu gosto muito, o Alan Post.
05:24Ah, conheço, sim.
05:25Pois é.
05:25E ele tem naquele livro, que é o mais famoso dele, chamado O Passado.
05:29Ele é um romance, acho que de 400 páginas.
05:32E ele fala o seguinte, que ele precisou primeiro construir aquele território para depois que esse território fosse habitado pelos personagens, pelos protagonistas do livro.
05:43Então, é um pouco isso que você fez com o Urânia, você construiu essa cidade também, para depois, não depois, mas ao mesmo tempo, você tinha que ter noção desse espaço, desse território que você ia delimitar, para aí sim esses personagens estarem se movendo dentro desse território, é isso?
05:58Sim, total. Por quê? A ideia do livro nasce de uma encruzilhada, desse espaço da encruzilhada.
06:06Eu visitei vários povoados durante a minha estadia lá no Vale do São Francisco.
06:13Eu viajava muito para pequenas cidades do interior.
06:17E aí, eu visitei uma cidade que me impressionou muito, que é uma cidade que fica no meio de uma encruzilhada.
06:24Então, a cidade que você tem é estadual, a estrada estadual, ela tem uma rua que corta e aí você tem casinhas de cada lado da cruz e acabou a cidade.
06:36E isso eu fiquei muito impressionada, porque a cidade, que não é uma cidade na verdade, ele é um distrito da cidade maior que se chama Santa Maria da Boa Vista.
06:46Então, o povoado, ele tem uma própria mística do próprio povoado.
06:52Então, o povoado tem várias histórias interessantes, assim, de grupos de ciganos que passaram lá e deixaram coisas escondidas.
07:00Há um homem que virava lobisomem, uma serpente que vive na torre do sino da igreja.
07:10As pessoas desse povoado são muito interessantes também.
07:15E aí, quando eu estava chegando, né, e a gente ia pernoitar lá, eu parei e disse assim, e é isso?
07:23O povoado é isso? São essas quatro casinhas e tal?
07:27E aí, todas as histórias que eu tinha ouvido falar, eu fiquei mais impressionada.
07:32Porque como é que pode um lugar tão pequeno ter tanta história?
07:35Porque eu fui para lá justamente por conta das histórias que eu tinha ouvido.
07:38Você foi atrás de histórias, né?
07:40Foi. Eu fui atrás de histórias.
07:43E eu fiquei muito impressionada com isso, né?
07:45Então, até porque a encruzilhada, quando a gente pensa nesse espaço, a encruzilhada, é um espaço muito forte.
07:52Ele tem também, eu sou historiadora com um foco em história das mulheres e história das religiões.
07:58Então, a encruzilhada é um símbolo fortíssimo dentro da mítica religiosa.
08:04É um lugar de encontros, né, no cristianismo.
08:08É essa cruz que representa o sofrimento de Cristo.
08:12Em algumas religiões pagãs, eram lugares de poder.
08:16Quando a gente pensa nas religiões de matriz afro, a encruzilhada é o lugar onde habita Exu.
08:21Então, a encruzilhada é um lugar muito importante.
08:23Então, a primeira cena que surge na minha cabeça e que está no livro é a cena de uma mulher que está dirigindo nessa estrada.
08:32Ela para no meio do acostamento ali na caatinga.
08:36Entra na caatinga, enterra um negócio lá, sai.
08:40E o carro dela quebra na encruzilhada e ela acaba ficando lá.
08:45Então, é como se esse lugar escolhesse ela.
08:48Então, ela para lá porque o lugar determinou que ela ia ficar.
08:50Então, o lugar, ele vai ganhando também essa força de personagem.
08:56E que lugar é esse?
08:57Então, a Urania é esse lugar onde só nascem mulheres.
09:01É o lugar onde o mundo começou.
09:04É o lugar onde o mundo pode acabar também.
09:06É o lugar onde mora uma serpente que é a narradora do livro.
09:09E aí, temos então uma certa explicação para o título do livro, né?
09:14Sim.
09:14Boca do Mundo, né?
09:15O Boca do Mundo ali vem de uma lenda.
09:17E aí, entra a minha experiência, por isso que eu falei também dos lugares que eu morei.
09:22Eu venho do Cariri Cearense.
09:24Você deve conhecer.
09:26O Cariri também é um lugar de muitas histórias.
09:29E de muita religiosidade, né?
09:30Muita religiosidade e muitas histórias.
09:32Então, assim, religião e lendas é uma coisa que sempre estiveram na minha vida.
09:37Desde pequena, minha avó era analfabeta.
09:39Minha avó era paraibana.
09:40De esperança.
09:42Sim.
09:42Mas, ela veio com a família dela, ela pequena.
09:46A mãe dela é grávida de sete, oito meses.
09:51Eles vieram a pé de esperança até Juazeiro do Norte para pagar uma promessa para o Padre Cícero.
09:56E acabaram ficando em Juazeiro.
09:58Então, a minha avó, ela era analfabeta, mas ela sabia, por exemplo, cordéis de cor.
10:05Vários cordéis.
10:06Coco Verde, Melancia.
10:08Histórias que eram muito famosas no cordel.
10:11Poesias, poemas, assim.
10:13E várias histórias.
10:14Então, ela sempre foi uma contadora de histórias.
10:17E o Cariri é um cadeirão de histórias.
10:20Tem muita coisa lá.
10:21É um manancial inesgotável, né?
10:22É demais, assim.
10:24Quem vai para lá, fica realmente impressionado com a capacidade que as pessoas têm de construir
10:30narrativas sobre o próprio lugar e de também, às vezes, transformar essas narrativas.
10:35Mas, como é que você transforma, então?
10:37Essa, como você falou, é uma transformação de narrativas, na verdade.
10:39Isso.
10:39Você tem o seu lado historiador, na verdade, é a sua profissão.
10:42É.
10:43Mas, você tem o seu lado da imaginação.
10:45É.
10:45Que desemboca, agora, na Boca do Mundo.
10:48Mas, um pouco antes, eu queria voltar um pouco para te falar...
10:51A gente volta daqui a pouquinho a falar do No Boca do Mundo.
10:53Tá.
10:53Mas, eu queria falar do seu primeiro lançamento, que é uma coletânea de contos, né?
10:57Lançamento literário, né?
10:58Tá.
10:59No útero não existe gravidade.
11:01E, nele, você faz uma dedicatória muito interessante.
11:06Você diz, as mulheres que temiam olhar no espelho e agora fazem dele uma arma.
11:11Você acha que as mulheres que escrevem estão fazendo, agora, do espelho, uma arma?
11:16É, estão fazendo da escrita uma arma, né?
11:18Sim, eu acho.
11:20Eu acho que, durante muito tempo, as mulheres, elas foram escritas pelos homens.
11:24As histórias das mulheres foram narradas pelos homens.
11:29E, só saía, né, dessas personagens mulheres, só saía da boca dessas personagens mulheres
11:34o que os homens queriam que elas dissessem.
11:37Seja para o bem ou para o mal, né?
11:39E, aí, eu acho que hoje...
11:41Isso te incomodava como leitora?
11:42Sim.
11:43Eu acho que, desde criança, eu sou uma leitora que eu aprendi a ler muito cedo.
11:48Minha mãe era professora.
11:50Então, eu aprendi a ler com 4, 5 anos de idade.
11:53E eu frequentei, comecei a frequentar a biblioteca correntemente, assim, aos 7 anos de idade.
11:59Então, eu frequentei uma biblioteca em específico, que era a biblioteca do Sesc, lá de Ozeano Norte,
12:04dos 7 aos 18, todos os dias, assim, de segunda a sexta.
12:09Eu ia, porque eu fazia natação e meu pai me deixava lá, tipo, 4 horas esperando ele sair do trabalho para me buscar.
12:16Então, eu ficava na biblioteca.
12:18E, aí, eu lia muito, né?
12:19E eu lia de tudo.
12:21quadrinhos, gibis, historinhas de criança.
12:25Aí, comecei a ler os clássicos, tipo, José de Alencar, que a gente tem muito contato, né?
12:30Com os clássicos, Raquel de Queiroz.
12:32O próprio Machado, que eu não gostava muito quando eu era criança, porque eu não entendia nada.
12:37Mas, depois, eu voltei para o Machado e gostei muito.
12:40Né?
12:40Enfim.
12:40Então, assim, a leitura...
12:43E, aí, tinha essa bibliotecária, que eu lembro muito bem dela, assim, porque ela me estimulava muito a ler e ela montou um clube de escrita para crianças e adolescentes.
12:53E foi aí que eu comecei a escrever, né?
12:55E eu gostava muito disso.
12:57Só que tinha uma coisa que sempre me incomodava, era quando eles faziam pequenos concursos entre a gente.
13:05E sempre ganhava um menino.
13:08Era muito difícil para a menina ganhar.
13:09Isso me incomodava muito.
13:11E, uma vez, eu ganhei, né?
13:15E, aí, eu fiquei, olha, se eu ganhei, é porque eu escrevo como um menino.
13:18Então, eu devo ser boa.
13:19Olha como é louco isso, né?
13:21Na cabeça de uma criança, de pensar, assim, que a falta de referências, a falta de escritoras, mulheres,
13:29ou a ideia de que os homens são sempre bons em tudo que fazem, e a gente tem que se esforçar muito para chegar nos lugares,
13:36é o que é muito introjetado na gente desde criança.
13:38Pelo menos no lugar de onde eu venho.
13:40E da geração que eu sou, né?
13:43Então, eu acho que isso hoje já mudou.
13:46Eu acho que, assim, de uns 15, 20 anos para cá, a gente já tem mulheres muito cientes do potencial delas, os espaços se abriram.
13:55Então, mulheres sempre escreveram.
13:57Mas, hoje, a gente tem mais espaços e a gente está tentando também cavar vários outros espaços, né?
14:04Mas, durante muito tempo, não.
14:07Então, quem que você tinha de referência?
14:09Por exemplo, para mim, as referências, Raquel de Queiroz, Clarice Lispector, Lídia Fagundes Teles, Cecília Meirelles, basicamente.
14:16Você contava nos dedos de duas mãos no máximo, né?
14:19Isso.
14:19Assim, você...
14:20E aí, era muito mais fácil dizer os nomes dos autores homens, porque a gente tinha muito mais contato.
14:25E você acredita que é mais... não mais fácil, mas causa mais impacto para uma leitora, como, no caso, você formado, assim,
14:34a representação feminina quando escrita por uma mulher?
14:36Olha, eu acho que, quando a gente escreve, a gente traz muito da nossa experiência.
14:43Não que a gente fale só de si.
14:47E eu estou falando isso de homens e mulheres.
14:49Não é só mulheres, não.
14:50Homens e mulheres trazem para a escrita a sua experiência.
14:53Eu acredito muito nisso.
14:54A gente escreve muito sobre si mesmo, mesmo quando a gente está escrevendo ficção.
14:58Então, eu acho que a experiência de escrita de um homem sobre a vivência de uma mulher é sempre uma escrita verticalizada.
15:09Porque a gente está numa sociedade em que os homens sempre foram considerados superiores às mulheres.
15:15E é uma sociedade ocidental, né?
15:17Não é só um caso do Brasil.
15:20A gente pega aquele livro do Harold Bloom, né?
15:22Que ele vai trazer ali todos os cânones da literatura ocidental.
15:26Você tem pouquíssimas mulheres.
15:28A maioria são homens, né?
15:31Então, eu acho que é um pouco isso.
15:32Dessa falta de referência, né?
15:36A gente não tem muito essa preocupação, por exemplo, da coisa da autoria, né?
15:41Da responsabilidade da autoria.
15:44Ai, será que eu vou honrar os meus antecessores?
15:46Não tem porque a gente...
15:47Paulo conhece as nossas antecessoras, entende?
15:50Então, eu acho que sim.
15:51Quando mulheres escrevem sobre mulheres,
15:53Eu acho que traz um pouco mais de força porque traz a coisa vivida mesmo.
16:00Mesmo que eu esteja falando, por exemplo, de uma mulher que é lavadeira.
16:04E eu nunca fui lavadeira.
16:06Mas eu consigo, talvez, entrar muito mais no lugar dessa mulher.
16:10Entende?
16:11E eu acho que como escritores e escritoras,
16:14a gente quer que os nossos personagens sejam verossímeis.
16:18E eles tragam isso.
16:20E façam conexão com o leitor, especialmente também com a leitura.
16:24Afinal de contas, no Brasil, várias pesquisas mostram isso.
16:26A maioria são leitoras.
16:28Mulheres, né?
16:28Mulheres, né?
16:29E aí você pensa assim,
16:30Ah, mas a literatura escrita por homens sempre foi considerada universal.
16:36Problemas universais.
16:38E a literatura escrita por mulheres
16:39era sempre considerada do universo do particular.
16:43Sendo que eu me identifico muito mais quando eu leio livros escritos por mulheres
16:50do que a experiência, por exemplo, de um homem de meia-idade que ficou,
16:54que se divorciou e está querendo se encontrar nos braços de uma garota de 20.
16:59Entende?
17:00Eu entendo muito mais a garota de 20 até do que o cara.
17:04Então, assim, para mim, isso não é uma experiência universal.
17:06Eu nunca vou passar por isso.
17:07Sem dúvida.
17:08Isso é uma experiência particular.
17:10E tem uma experiência coletiva recente que é este livro aqui,
17:14O Dia Escuro,
17:15que também tem uma provocação exatamente nessa montagem.
17:18São contos inquietantes escritos por autoras, mulheres brasileiras.
17:23Mas que, no meu entender,
17:25só para quem não conhece esse livro,
17:27foi lançado no ano passado a organização da Fabiane Sexes
17:30e da Socorro a Ciori Cearense, como você sempre.
17:35E tem a mineira Marcela Dantes, está no livro.
17:40Autora de Vento Vazio e fez a sua apresentação aqui do livro do Boca do Mundo.
17:45Mas tem uma coisa interessante, e esse ponto que eu queria dizer,
17:48que eu enxergo uma conexão entre esse livro, O Dia Escuro,
17:52e a produção literária latino-americana que está sendo feita no século XXI,
17:58com a qual as mulheres estão encabeçando depois, digamos assim,
18:01de uma supremacia masculina no século XX,
18:04até mesmo um realismo mágico, que é protagonizado por homens.
18:07Você tem pouquíssimas mulheres se destacando.
18:10Vocês agora tomam conta deste espaço,
18:13não só no Brasil, mas como na América Latina.
18:16E com essa capacidade também de não ficar se restrita à reprodução da realidade,
18:24ou de uma redescoberta realidade,
18:26mas sim de contar todas as histórias que vocês querem contar e que precisam contar.
18:30E aí entrando até no fantástico.
18:32E de inventar também.
18:33É, da invenção, da inquietude.
18:35Eu não preciso estar falando só de coisas que eu vivi.
18:38Eu tenho a capacidade de inventar coisas,
18:42e de fantasiar coisas, e de criar histórias.
18:45E como é que foi então a criação da história,
18:47que se chama Paixão de Santidade,
18:49é o seu conto?
18:50É assim.
18:50Porque eu identifiquei um elemento da religiosidade muito forte nessa história.
18:55Então como é que surge essa história?
18:56Resume um pouquinho para quem está acompanhando o nosso podcast essa história,
19:00e como é que você chegou nela.
19:01Tá.
19:01A Paixão de Santidade é um conto sobre uma moça que é uma beata, né?
19:06E aí beata, quando você vai ali para o interior do Nordeste,
19:10o que é a beata?
19:11A beata é aquela mulher que frequenta a igreja,
19:13ela não é freira,
19:15mas ela frequenta a igreja religiosamente,
19:17ela tem até atribuições dentro da igreja,
19:20ela fica muito ali na cola do padre,
19:22e o padre acaba muitas vezes delegando funções para essas mulheres que estão ali.
19:26Então elas gerenciam, por exemplo,
19:28a distribuição das hóstias,
19:30ela gerenciam a limpeza da igreja,
19:33as reuniões de oração, né?
19:36Novenas.
19:37Então são mulheres muito religiosas,
19:39mas não são freiras.
19:40E que acabam,
19:41dependendo da cidade,
19:42quando é uma cidade muito pequena,
19:44principalmente cidades menores, né?
19:47Elas acabam aí ganhando um certo poder dentro da cidade,
19:51porque elas são essas representantes do padre na cidade.
19:57E aí a história conta a trajetória, né?
20:00Dessa beata,
20:02que ela,
20:04num evento muito importante na cidade,
20:06que é o evento da paixão de Cristo,
20:08ela está organizando isso,
20:10como é que vão se dar os rituais do dia,
20:12ela chega na igreja muito cedo,
20:14e ela percebe que alguma coisa estranha aconteceu com a estátua de Cristo,
20:17que está lá exposta, né?
20:19Que se a gente for em algumas cidades, por exemplo,
20:21como Goiás Velho, né?
20:23No Norte tem isso muito forte, né?
20:26Da paixão, das procissões da paixão de Cristo.
20:30No próprio José do Norte também,
20:31é muito comum eles usarem uma estátua em tamanho real do Cristo morto.
20:36E ele fica lá, deitado num caixão, no meio da igreja.
20:39A gente tem essa tradição aqui em Minas também.
20:41Aqui em Minas tem Sabarauro, Preto, né?
20:43Tem alguns lugares também.
20:45Então,
20:45ela percebe que alguma coisa muito estranha aconteceu com esse corpo morto do Cristo,
20:51e ela começa a pirar nisso e a tentar resolver esse problema.
20:55E aí,
20:55ela vai chegar a umas conclusões muito loucas,
20:59que vem da experiência religiosa dela.
21:02E que vão provocar essa sensação de quietude,
21:05que estão nesses contos,
21:07que estão nesses contos da coletânea.
21:09E você falou sobre essa inspiração e esse lugar das autoras latino-americanas.
21:14Uma curiosidade é que a Socorro e a Fabiane,
21:16quando elas pensaram na coleção,
21:19uma das grandes referências é a Mariana Henriquez.
21:21Elas falaram pra gente.
21:23A gente quer fazer algo ali próximo do que a Mariana Henriquez está fazendo.
21:27As Coisas Perdemos no Fogo,
21:30Nossa Parte de Noite.
21:32Então,
21:32a gente quer contos de terror,
21:34mas que não sejam,
21:35e tem alguns que são até,
21:37mas que não sejam só esse terror que a gente conhece na TV, né?
21:40Esse terror que causa aquele jump scare, né?
21:44Que é aquela coisa que você tem que pular de susto.
21:46Não.
21:46O susto,
21:47ele vai vindo de algumas,
21:49às vezes até da incredulidade,
21:51de você pensar,
21:52eu não acredito que essa personagem está fazendo isso, né?
21:55Que é algo que a Samantha Sheplin também faz em alguns contos dela.
21:58Que é a Mônica Reda também.
21:59Mônica Reda faz uma dígula no romance.
22:01Até tem uma geração de autores.
22:03A Maria Fernanda Ampoeiro faz isso de uma forma um pouco mais explícita no Rio de Galos, né?
22:09Que a gente tem um conto muito legal da Mara Moira,
22:12que traz também uma coisa do body horror, né?
22:14Que é um pouco o que a Maria Fernanda Ampoeiro faz, né?
22:18Agora, a partir desse ponto da conversa,
22:23a gente pode conversar um pouco mais agora sobre o Boca do Mundo.
22:27E eu só queria lembrar para quem está nos acompanhando
22:29que essa entrevista vai ficar disponível não só no nosso canal do YouTube,
22:33mas também no site do Estado de Minas, no em.com.br
22:36e também na edição impressa.
22:38A gente vai ter um resumo na edição impressa do Pensar do Estado de Minas,
22:41que todo sábado está nas bancas,
22:42junto com a edição semanal do nosso jornal.
22:46Bom, eu queria falar um pouco dessa questão da religiosidade,
22:49na verdade, da espiritualidade,
22:51que é um tema, não um tema,
22:55porque eu acho que a literatura não tem tema,
22:56mas eu acho que é um ponto muito forte no Boca do Mundo
23:00e que eu queria que você contasse como é que ela entrou na sua narrativa.
23:04Tá.
23:05E aí eu aproveito também para explicar
23:06até porque é que eu escrevi esse conto no dia escuro.
23:09Como eu te falei, eu sou de Joseiro do Norte,
23:11um lugar que é conhecido pelas romarias do Padre Cícero.
23:14E isso, a religiosidade, né, em torno do Padre Cícero,
23:18é uma coisa que eu convivo desde criança, né?
23:20Então, eu convivi com o Romeiro a vida toda.
23:23Eu conheço pessoas que tiveram ranchos de Romeiro,
23:26que são esses lugares de acolhimento e tal.
23:28E qual é a história oficial de Joseiro do Norte?
23:31No dia 6 de março de 1889,
23:34o Padre Cícero ministrou a Oste a uma beata.
23:36Essa é a Oste a Sangô,
23:38é um fenômeno chamado transubstanciação eucarística.
23:42E a partir daí surgiram vários milagres
23:45que tornam o Padre Cícero um santo popular, certo?
23:48Então, na faculdade,
23:50eu fui pesquisar um pouco mais essa história.
23:52E eu descobri que essa beata,
23:55que inclusive nem era nomeada,
23:57ela tem um nome,
23:57ela se chama Maria de Araújo.
23:59E os fenômenos,
24:01tanto do sangramento da Oste,
24:04quanto outros fenômenos considerados extraordinários,
24:07aconteciam com ela desde que ela era criança.
24:10E esse fenômeno do sangramento é o fenômeno,
24:13é o primeiro fenômeno que ganha muita popularidade.
24:16Chega a diocese de Fortaleza,
24:19na época não tinha diocese no interior.
24:22O bispo manda investigar,
24:24tem todo um processo episcopal sobre essa mulher.
24:27Esse processo vai pra Roma.
24:30No Vaticano tem todo um processo sobre essa mulher.
24:33Ela é condenada a uma série de coisas.
24:36Uma delas é que tudo que tivesse o nome dela fosse apagado.
24:40Ela tinha vários registros.
24:42As pessoas faziam medalhinhas com o nome dela.
24:45As primeiras Romarias ao Juazeiro foram para ela,
24:49não para o Padre Cícero.
24:50Então, a minha tese,
24:52que eu levei à faculdade, mestrado, doutorado,
24:55mais de dez anos investigando isso,
24:58é que,
24:59a partir da condenação da Maria de Araújo,
25:01há um apagamento dela
25:04e um deslocamento da crença para o Padre Cícero.
25:07Isso resultou na produção de uma tese doutorado,
25:11ganhou o prêmio CAPES em 2014
25:13e foi reeditada ano passado pela Planeta,
25:16se chama Incêndios da Alma.
25:18E no Incêndios da Alma eu estudo essa beata,
25:21que é, na verdade,
25:22esse livro é bem um compilado de todos os meus estudos,
25:25são dez anos de estudo sobre essa mulher.
25:28E aí, por isso que quando a Socorro me pediu um conto
25:31para esse livro aí,
25:32eu trouxe uma beata.
25:35E aí eu pego a beata Maria de Araújo
25:38e coloco no Boca do Mundo também,
25:39porque ela vira uma santa popular.
25:42Então, há uma conexão entre os dois livros.
25:44Na verdade, tem conexão entre tudo,
25:46porque tem conexão com a minha vida,
25:48com a minha formação acadêmica,
25:50com o que eu conto,
25:52a história que eu conto no dia escuro.
25:54Até com o Nútero não existe gravidade também,
25:57porque eu fui uma...
25:59Todo mundo que nasce no jazeiro
26:00é muito envolto com religião desde pequena.
26:04Quer queira, quer não.
26:06Quer goste, quer não.
26:07Quer seja religioso, quer não.
26:08Mas a espiritualidade que está em Boca do Mundo
26:10é diferente da religiosidade.
26:12É, porque aí foi intencional.
26:14Aí eu queria transformar essa religiosidade
26:17em algo mais que fosse orgânico e não imposto.
26:20Porque aí a gente sabe de todo o processo
26:22de imposição da fé da Igreja Católica no mundo.
26:27Não é uma coisa do Brasil, no mundo.
26:28Então, eu queria que no Boca do Mundo fosse mais orgânico.
26:32E aí, como eu tinha falado,
26:33eu me inspirei também em várias histórias e lendas de lá.
26:37E a história que eu mais me inspiro
26:39para criar o cenário de Boca do Mundo
26:41é a história da Pedra da Batateira.
26:45Que é uma história que conta
26:46que quando os indígenas cariris
26:49são expulsos da região,
26:52eles deixam algumas maldições.
26:54Uma delas é essa pedra
26:56que guarda uma fonte de água inesgotável
27:00que se retirada,
27:02essa água pode inundar o vale.
27:05E o vale vai voltar a ser mar.
27:07E lá a gente já tem evidências paleontológicas
27:10que lá foi mar durante muito tempo.
27:12O mar recua justamente até a Paraíba.
27:15E aí, essa pedra está lá até hoje.
27:18E ela foi acorrentada ao chão.
27:20As pessoas têm muito medo de tirar essa pedra.
27:21Ela fica no leito de um rio.
27:24Passa por dentro de um sítio,
27:25inclusive, que é uma área de reserva
27:28de proteção ambiental.
27:31E essa pedra está lá.
27:33E realmente foram feitos estudos geológicos
27:35que tem muita água lá nessa fonte.
27:38E essa pedra,
27:39por isso que eu coloco a Boca do Mundo nesse lugar.
27:42Nesse lugar onde os indígenas
27:45que estão na história,
27:46quando são expulsos,
27:47deixam lá essa boca do mundo sangrando,
27:49que é essa água que está jorrando.
27:50eles cobrem esse buraco com essa pedra.
27:53E esse lugar,
27:54onde o mundo nasceu,
27:55porque era a casa desses indígenas
27:57que foram expulsos,
27:58e é onde o mundo pode acabar
27:59se essa pedra retirada.
28:02E quando a protagonista chega no lugar
28:03e ela cria a urânia
28:05a partir desse lugar,
28:07que é essa boca do mundo,
28:09ela esconde essa pedra.
28:11Ela crava uma praça no meio,
28:13bota uma fonte lá
28:14para esconder a pedra.
28:15para ninguém saber
28:16onde é que o mundo começa
28:17nem onde o mundo vai terminar,
28:19porque ela se apodera
28:21desse território.
28:23Então é um pouco isso.
28:24Então está tudo interligado.
28:26A gente está caminhando
28:27para a reta final
28:28da nossa conversa
28:29com a Dia Nobre,
28:30Dia Bárbara Nobre.
28:32três nomes muito fortes,
28:34nome e sobrenome.
28:36Mas tem uma parte
28:36que eu acho que é interessante
28:37você contar para a gente,
28:38que está voltando
28:40ao seu livro de contos,
28:41No Útero Não Existe Gravidade,
28:43que saiu pela Penalux.
28:45É, é uma editora independente
28:47que não existe mais, inclusive.
28:49E agora você está
28:49na Companhia das Letras,
28:50com distribuição garantida,
28:51distribuição nacional,
28:53por uma das maiores editoras do país.
28:55Mas tem uma...
28:57Você coloca nesse livro de contos
29:00algo que acabou acontecendo com você,
29:02que você escreve no livro.
29:04Aos 16 anos,
29:05li Crônica da Casa Assassinada,
29:07do mineiro Lúcio Cardoso.
29:09Amei tanto que o destruí.
29:11Como é que foi essa reação?
29:12Conta para a gente.
29:13E por que você decidiu levá-la também?
29:14Foi tão forte assim
29:15que você decidiu levá-la
29:16para o seu primeiro livro de contos.
29:18O No Útero Não Existe Gravidade,
29:19ele é um livro de ficção,
29:21mas ele parte
29:22de alguns elementos autobiográficos.
29:24Um deles é uma situação
29:26de abandono materno
29:27que eu sofri.
29:28E o Crônica da Casa Assassinada
29:31fala justamente disso.
29:32Uma mãe que vai embora
29:33e que depois retorna.
29:35E desses desafios
29:38que o personagem enfrenta
29:41a partir desse retorno da mãe.
29:44E eu lembro que quando eu li,
29:47eu fiquei muito impressionada.
29:49Eu li o livro,
29:49acho que umas três vezes consecutivas.
29:52Tipo, eu lia, terminava,
29:53recomeçava o livro.
29:54Lia, terminava, recomeçava o livro.
29:55E eu tive vários sentimentos.
29:59Eu adorei,
30:00eu odiei,
30:02eu senti raiva
30:03e eu senti muita vontade
30:05de escrever como ele escrevia.
30:08Eu pensava...
30:08Então foi uma reação muito intensa.
30:09Foi muito intensa.
30:10E aí junto ao fato
30:11de eu ser uma adolescente,
30:12nos anos 2000,
30:1416 anos.
30:15Foi exatamente nos anos 2000.
30:17Então já era um universo muito intenso.
30:18Mas depois você recuperou
30:19um outro exemplar de crônica?
30:20Ah, sim, eu já tenho outras exemplares.
30:21Já tem, não?
30:22E não voltou a rasgar.
30:23Não, não.
30:24Mas aí na época eu comecei,
30:26tipo,
30:26teve um trecho
30:27que agora eu não vou te lembrar
30:29qual era a página.
30:30Mas assim,
30:30eu fiquei com tanta raiva
30:31que eu rasguei.
30:32E eu pensava assim,
30:33isso é muito eu,
30:34parece muito comigo.
30:35Entende?
30:36E uma vez eu lembro
30:37até que eu estava conversando comigo
30:39e eu dizia,
30:40cara,
30:40eu queria muito ter vivido
30:42na época do Luz Cardoso
30:42para conhecer ele.
30:43Depois,
30:44lendo a biografia da Clarice Lispector,
30:48ela conhecia ele,
30:49dizem as fofocas
30:52que ela era muito apaixonada por ele.
30:54E eles trocavam cartas
30:55e era uma coisa muito intensa
30:57também entre eles.
30:59Então,
30:59eu ficava assim,
31:00meu Deus,
31:01sabe?
31:02Eu queria ter conhecido.
31:04Tem um autor
31:04que eu queria ter conhecido
31:05pessoalmente,
31:06o Luz Cardoso.
31:08A Clarice também,
31:09eu queria muito ter conhecido
31:10a Clarice.
31:12Mas assim,
31:12o Luz Cardoso
31:14é um autor
31:15que eu acho
31:15que ele é,
31:16inclusive,
31:16injustamente pouco conhecido
31:18na literatura nacional.
31:20É um autor
31:21que
31:21as pessoas que eu falo,
31:24a exceção aqui
31:24das pessoas de Minas,
31:26pouca gente sabe quem é.
31:27Agora,
31:28ganhou um pouco mais de visibilidade
31:29porque a Companhia das Letras
31:30reeditou a obra dele,
31:32né?
31:32E os diários dele.
31:34Mas ele é uma figura
31:35interessantíssima
31:36no cenário literário
31:37porque ele,
31:38quando ele escrevia,
31:38ele já rompia
31:39com um padrão
31:40que a gente tinha
31:41de literatura
31:42que era muito ditada
31:44pelo Guimarães Rosa,
31:45por exemplo,
31:45que é um grande autor,
31:47que tem toda a sua relevância,
31:49mas que é outra coisa.
31:51E eu acho que ele é
31:52muito subversivo.
31:53E eu acho que foi isso
31:54que me incomodou
31:55tanto nele,
31:56né?
31:56De eu ler
31:57tanta coisa padrão,
31:59assim,
31:59do que é o romance
32:00contemporâneo,
32:01e eu pego uma obra
32:02como a Crônica
32:03da Casa Assassinada.
32:04É um assombro, né?
32:05Que é um assombro.
32:08E eu fiquei,
32:08como é possível
32:09esse livro existir?
32:10Eu lembro que foi assim...
32:12Eu acho que, na verdade,
32:12sem querer,
32:14só uma pequena digressão,
32:16eu acho que
32:16são dois monumentos.
32:17Na Grande Sertão Veredas
32:18são completamente diferentes.
32:19Completamente diferentes.
32:20Mas são dois assombros.
32:21Eles causam,
32:22mas podem causar
32:22o mesmo impacto
32:23ao leitor.
32:23Sim.
32:24Por serem ovnis,
32:26assim,
32:26naquele momento
32:27da literatura brasileira.
32:28E eu acho também
32:29que aí depois,
32:30lendo os diários dele,
32:31conhecendo um pouco mais
32:32da biografia,
32:34o Lúcio Cardoso,
32:36ele é um cara
32:37que ele está
32:37na contracorrente de tudo
32:39o que uma sociedade
32:41conservadora,
32:42religiosa,
32:43traz.
32:45E não foi redescoberto
32:46da mesma forma
32:47que o Guimarães.
32:48O Guimarães já teve
32:48o reconhecimento em vida?
32:49Sim, sim.
32:50Foi até para...
32:51É, não foi, infelizmente.
32:52Continua sendo
32:53um escritor meio maldito.
32:54É, mas assim,
32:55eu rasguei
32:56essa primeira edição
32:57que eu tinha,
32:57que não era minha,
32:58detalhe,
32:59era da biblioteca.
33:01E que, enfim,
33:02ficou lá,
33:03ninguém...
33:03tipo,
33:04nunca devolvi o livro,
33:06também nunca me cobraram,
33:07mas depois,
33:08assim,
33:08só para fazer a minha culpa,
33:09gente,
33:09eu já doei muitos livros
33:10para bibliotecas,
33:12tá?
33:12Então,
33:12estou perdoada.
33:14Mas,
33:15é um livro
33:16que eu comprei depois.
33:17Pois é,
33:17então faz parte
33:18da sua biblioteca atual.
33:19E faz parte
33:20da minha vida, né?
33:21Agora,
33:21voltando para
33:22no útero
33:23não existe gravidade,
33:24tem uma afirmação
33:24que eu queria pegar
33:25como gancho
33:26para te fazer
33:26uma das últimas perguntas.
33:28Você escreve
33:28que a memória
33:29reescreve o passado
33:31como um sonho
33:32que se derrama
33:32para a realidade.
33:34Como é que a memória
33:35e o sonho
33:35influenciam a sua escrita
33:37e, especialmente,
33:38o Boca do Mundo?
33:39Ah,
33:40em tudo.
33:41Eu sou uma pessoa
33:41que sonha muito,
33:42desde pequena.
33:44Eu tenho sonhos,
33:44assim,
33:45loucos.
33:45Eu tenho muitos sonhos
33:46recorrentes.
33:47Eu tenho sonhos
33:48com cidades que eu visito
33:49recorrentemente,
33:51mas que eu nunca vi,
33:51assim,
33:52na vida acordada.
33:53Mas que eu conheço
33:54a cidade,
33:54assim,
33:55todas as pedras da cidade
33:56são cidades construídas
33:57do meu sonho mesmo.
33:59E eu tenho cadernos
34:00de sonhos,
34:00assim,
34:01que eu anoto,
34:01né?
34:02E a memória
34:04vem muito também
34:05da minha experiência
34:06como historiadora.
34:07Mas você aproveitou
34:08algumas das anotações
34:10do seu caderno de sonhos
34:11no Boca do Mundo?
34:11Em tudo que eu escrevo
34:12tem coisa
34:13que está nos meus cadernos.
34:16Então, sim,
34:17os sonhos de Tereza,
34:18por exemplo,
34:19muitos dos sonhos de Tereza
34:20são sonhos que eu já tive.
34:22Que eu empresto
34:23para ela, né?
34:24É emprestado,
34:25assim.
34:27Mas,
34:27que eu ia falar,
34:28assim,
34:28da memória.
34:29A memória,
34:29ela vem muito
34:30dessa trajetória
34:31como historiadora.
34:32A memória é um conceito
34:33muito caro na história,
34:35né?
34:35E ela,
34:36muitas pessoas
34:38tendem a achar
34:39que a memória,
34:39ela se refere
34:40àquilo que a gente lembra.
34:42Mas não é bem assim.
34:44A memória,
34:44na realidade,
34:45ela é aquilo
34:46que está entre
34:47o que a gente lembra
34:48e o que a gente esquece.
34:49porque ela é um recorte.
34:52Então,
34:52quando a gente fala,
34:54assim,
34:54de rememorar,
34:55aí você está
34:56relacionando aquilo
34:58que você lembra.
34:59Mas a memória em si
35:00não é um conceito
35:01somente que aponta
35:02para a lembrança.
35:03Ela aponta também
35:04para o esquecimento,
35:05para aquilo que a gente
35:06ou escolheu esquecer,
35:08conscientemente
35:09ou inconscientemente.
35:10E que acaba
35:11se derramando nos sonhos.
35:13Então,
35:13tem muitos,
35:14por exemplo,
35:14traumas que a gente vive
35:16que a gente esquece
35:17e que aparece
35:18de forma recorrente
35:19nos nossos sonhos
35:20porque está lá
35:21no nosso inconsciente.
35:22A memória também é feita
35:23desse lugar do inconsciente
35:25que é um lugar
35:25bem obscuro,
35:27lugar, sabe,
35:28que, tipo,
35:28você não sabe muito bem
35:29o que tem ali
35:30e que, às vezes,
35:31é melhor nem mexer, né?
35:32Quem faz análise
35:33mexe muito nesse lugar.
35:36Então,
35:36eu fiz análise
35:37durante mais de sete anos.
35:39Então,
35:40é algo que está
35:41muito presente
35:41na minha vida.
35:42Então,
35:43memória e sonhos
35:44é algo
35:45que não dá
35:46para desconectar
35:46da minha própria trajetória
35:47e da minha própria vida.
35:48E estão estão presentes
35:49no Boca do Mundo.
35:50E estão muito presentes
35:51no Boca do Mundo
35:51porque tem,
35:52inclusive,
35:53cenas que acontecem
35:55em sonhos.
35:56Tem personagens
35:57que só conversam
35:58nos sonhos,
35:59que não conversam
36:00na vida acordada,
36:01mas que nos sonhos
36:02elas conseguem
36:03se entender
36:03e uma entender a outra
36:04e chegar em algum lugar.
36:06Por falar
36:07nesses personagens,
36:09nesses diálogos,
36:10eu queria que você
36:10encerrasse lendo,
36:11que a gente encerrasse
36:12com uma leitura
36:12de um trecho
36:13de Boca do Mundo.
36:14Já está em todas as livrarias,
36:15todos os sites também.
36:19Livro de estreia,
36:20o primeiro romance
36:21da Dia Bárbara Nobre
36:22que a gente recebeu
36:24aqui no podcast
36:25do Pensar.
36:26Foi um prazer
36:26de te receber aqui.
36:28Espero que você volte
36:29mais vezes
36:29a Belo Horizonte
36:30para a gente conversar
36:30mais vezes
36:31com seus próximos trabalhos
36:32e que você continue
36:35trilhando esse percurso
36:37na literatura contemporânea
36:39que a gente está vendo
36:40que é só o começo.
36:40Muito obrigada.
36:42Eu fico muito feliz
36:43de estar aqui.
36:44Quero voltar outras vezes sim
36:45e a gente vai continuar
36:47conversando.
36:48Com certeza.
36:48Vamos lá.
36:49Vou ler uma parte bonitinha,
36:50tá?
36:50Do livro.
36:51Uma parte romântica.
36:52O sino da igreja
36:55tocou a cesta badalada.
36:57Lá no alto
36:58da roda gigante,
36:59Bamila agarrou
37:00a mão de Tereza
37:00e fixou o olhar
37:01em seu arco do cupido,
37:03o espaço curvo
37:04entre o nariz
37:05e a boca.
37:06As luzes do parque
37:07incendiavam o céu,
37:09mas ainda era possível
37:10ver andares
37:11brilhando na constelação
37:12de escorpião
37:13através do beijo
37:14das duas.
37:15O corpo de Tereza
37:16descamava por inteiro,
37:18os olhos ainda opacos
37:20se renovavam
37:20feito cobra
37:21em tempo de equidize.
37:23Era possível
37:23vislumbrar
37:24uma pele nova
37:25cobrindo a extensão
37:26do seu corpo,
37:27erigindo-se
37:28como um monumento.
37:29De pouquinho em pouquinho
37:31feito um bebê
37:31aprendendo a andar,
37:33feito a semente
37:34plantada por ela,
37:35germinando no estômago
37:36do mundo,
37:37feito uma cidade
37:38construída
37:39tijolo a tijolo,
37:41feito a terra
37:41que se renova
37:42milênio após milênio.
37:45Dia Bárbara Nobre,
37:46Boca do Mundo,
37:47muito obrigado
37:48pela sua presença
37:49aqui com a gente.
37:50Até a próxima.
37:51Até a próxima.
37:52Até a próxima.
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