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A cena literária fervorosa da capital mineira se estende, também, à produção voltada para as crianças. Editoras, como a Aletria, fundada por Rosana Mont'Alverne, e tantas outras, levam a produção de literatura infantil para fora de Belo Horizonte, enquanto lutam contra a censura em constantes proibições de livros nas salas de aula e bibliotecas estudantis.

"Quando a gente precisa entregar para a Justiça alguma coisa da literatura, eu acho que isso é um grande retrocesso. Mas não há outro jeito", desabafa.

Em entrevista ao Estado de Minas, Rosana Mont'Alverne conta sobre o mercado editorial de Belo Horizonte e responde se considera ou não a cidade como "capital dos livros".

Esta entrevista faz parte da série especial "BH: Capital dos Livros", publicada pelo EM. Confira a reportagem completa no site: em.com.br/especiais

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Transcrição
00:00Na certidão de nascimento da Letria, está escrito que ela foi feita para ser um instituto cultural
00:07de promover atividades em torno da literatura oral e escrita, uma produtora cultural e uma editora.
00:16Só que nós não começamos publicando imediatamente.
00:19Começamos, primeiro, fazendo formação de contadores de histórias.
00:24Até hoje, nós fazemos cursos, já formamos centenas de contadores de histórias.
00:30Muitos que estão aí contando profissionalmente em Minas Gerais foram nossos ex-alunos,
00:35promovendo eventos, fazendo eventos, etc.
00:39Aí começamos a publicar um livro aqui, outro ali, não comercialmente, mas fomos tendo essas experiências.
00:47Depois eu achei que eu precisava entender mais sobre isso e aí fui visitar vários editores,
00:54fui entender do negócio, teve vários editores que nos ajudaram muito,
00:59que foram nossos, digamos, professores, aqueles orientadores mais experientes.
01:05E eu fui fazer um mestrado em educação, porque eu venho da área jurídica,
01:09fui fazer um mestrado em educação, entrei em todos os grupos de pesquisa
01:14sobre literatura infantil, sobre ilustração, texto, enfim.
01:19Eu queria entender desse objeto mágico e encantado que é o livro.
01:23E eu fui aprendendo.
01:25E em 2009, eu acho que junto com a minha filha, Juliana Juju Flores, que era minha sócia,
01:31nós achamos que nós estávamos prontas para publicar comercialmente.
01:36Os primeiros livros que a gente publicou foi Bichos, do Ronaldo Simões Coelho e da Ângela Lago,
01:43que foi um sucesso até internacional, assim.
01:45Ganhou todos os prêmios.
01:47Ganhou até um prêmio em Bolonha, que é uma feira importante.
01:49A Enengarda, do Pierre André, que até hoje é o xodó da meninada, esse livro.
01:56Então, logo de cara, a gente publicou esses dois.
02:00Pouco antes, a gente tinha publicado um da Sandra Lani,
02:03que foi o Histórias da Nossa Gente, mas que hoje está com a más edições.
02:08Então, assim, a gente caprichou.
02:11Eu acho que nós começamos bem.
02:12O incrível nessa história toda de fazer livro é essa paixão que eu acho que nos une, sabe?
02:20Tem uma paixão louca que, eu falo que é muito louca, que une livreiro, editor, distribuidor,
02:27essa gente que eu denomino o povo do livro.
02:30Esse povo do livro não desiste do livro, nunca.
02:34E eu acho que é por isso que o livro resiste tanto.
02:37A criança, ela está preparada para os conteúdos desde pequenininha.
02:44É incrível como eu vejo que muita gente hoje em dia subestima ainda,
02:51até nos dias de hoje, há quem, e parece que esse número tem aumentado,
02:56subestime a inteligência da criança, o jeito da criança lidar com aquele livro.
03:03Às vezes, um adulto, já com alguns conceitos e preconceitos que ele adquiriu ao longo da sua vida,
03:12ele olha para um livro e vê algo feio, algo feio que não existe, que está só na cabeça dele.
03:20Ele vê algo que ele acha, que ele supõe que a criança, que vai ser ruim para a criança, e não é verdade.
03:29Tem uma história muito antiga, um clássico que chama Pele de Asno.
03:32É a história de uma princesa que o pai fica viúvo, o rei, e ele precisava se casar de novo,
03:40porque o papel dele de rei exigia que ele tivesse uma rainha ao lado,
03:44e ele não encontra ninguém à altura dele, e ele fala assim,
03:48não, minha filha, você é minha filha, você é a única que está à altura da sua mãe, vou casar com você.
03:54Ele falou, claro que não.
03:56Só que naquele tempo do conto de fadas, a única saída dessa princesa foi fugir.
04:03E ela foge com a ajuda de uma fada madrinha, que a esconde sob uma pele de asno, uma pele de um burro.
04:12Então, ela vai embora dali, vai parar em outro país, em outro lugar, e vai trabalhar na cozinha de um outro castelo.
04:21Foi, então, apelidada de Pele de Asno.
04:24Aí acontece um tanto de coisa, e, enfim, claro que ela não se casa com o rei,
04:30e toda criança entende isso tranquilamente.
04:33E, recentemente, já nos tempos modernos, o escritor José Mauro Branti escreveu um livro
04:40que chama Enquanto o Sono Não Vem, e dentro desse livro tem uma história parecida,
04:46uma outra versão parecida com a pele de asno, e alguns pais disseram que a história estava estimulando o incesto.
04:54Não tem nada a ver com isso, nada a ver.
04:56Pelo contrário, eu digo que as histórias são um tipo de vacina.
05:02Até um autor muito querido da Letria e de outras editoras também, o Ilan Brehman,
05:07ele fala muito bem sobre isso, que algumas histórias infantis são vacinas
05:13para as crianças lidarem com as questões do mundo adulto.
05:17Esse, sim, cheio de violências, cheio de perversão, etc.
05:22Então, a criança, ela lida com isso de uma outra maneira, ela vê com naturalidade.
05:28Então, ali ela percebe que a princesa arranjou uma saída.
05:32Isso é o mais importante para a criança.
05:35Como que a aventura que a princesa empreendeu para lidar com aquele problema.
05:41Então, ela se afastou, ela arranjou aliados, sabe?
05:46Ela deu um jeito.
05:48Então, a literatura faz isso.
05:50A criança intui isso muito melhor do que um adulto.
05:55Porque a criança brinca.
05:57E quando a criança brinca, ela está fazendo alguma coisa muito séria.
06:02É muito bonito ver uma criança brincando, porque ela está vivendo aquela brincadeira.
06:08Eu tenho um livro, esse exemplo também é muito interessante,
06:13que chama-se Meu Pai é uma Figura.
06:17E é sobre a profissão desse pai figura.
06:20Então, o pai é uma figura, ele é diferentão, esse pai do livro.
06:24Então, ele é diferentão.
06:25E aí fala, ah, meu pai, ele faz camisetas lindas e ele vende.
06:30Meu pai escreve, meu pai pinta, meu pai toca, meu pai tem uma banda, meu pai cozinha para mim.
06:38Então, a criança do livro fala, meu pai é uma figura, sabe?
06:42Mas muita gente no livro fala com ela, seu pai é uma figura, com outro tom.
06:49Talvez num tom de deboche, mas a criança acha o pai uma figura, num tom de admiração.
06:54E esse é um livro também que eu tenho o maior xodó com esse livro.
06:58Eu fui uma vez numa feira em Mariana, e aí estava contando essa história.
07:02E no final eu pergunto para os meninos qual que é a profissão do pai.
07:06Porque o pai faz esse tanto de coisa, né?
07:08Aí as crianças falam, ah, ele é cantor, ah, ele é ilustrador, ah, ele é desenhista.
07:13E no final, o pai é isso tudo, o pai faz aquilo tudo.
07:17E aí, eu falei, e o pai de vocês, também é uma figura?
07:21Aí as crianças todas levantam a mão.
07:23Meu pai é uma figura, meu pai me carrega no ombro, me leva não sei aonde, todos foram contando.
07:27Aí um menino pequitinho, ele levantou o dedinho e falou baixinho.
07:32Eu falei, seu pai também é uma figura?
07:34Ele falou, sim, meu pai é uma figura.
07:37Meu pai enterra caixões.
07:40Então, ele falou aquilo.
07:44Eu falei, nossa, que coisa incrível.
07:46Seu pai é realmente uma figura, mas de um tom de genuína admiração.
07:52Olha que especial que o pai dele é.
07:55Então, enquanto acabou a sessão de histórias, a professora veio conversar comigo.
08:00Para dizer que era um menino que sofria bullying na escola, porque o pai era coveiro.
08:05Então, a gente não tem noção do que é a literatura, do alcance da literatura, desse poder.
08:13Então, a gente é muito cuidadoso no que a gente escolhe para publicar.
08:19Porque como a gente evita o tempo todo não subestimar a criança, porque ela entende.
08:26Então, por exemplo, esse livro, o pai do livro figura é separado e tem uma namorada risonha.
08:32Ok. Quantas crianças têm pais separados e o pai tem uma namorada risonha ou não risonha?
08:39É da vida. É do mundo. É do universo que está aí.
08:43Não tem como você tirar isso da frente de uma criança, porque ela vai ver e conviver com isso.
08:50Mas tratar isso de um jeito na literatura é legal.
08:55Mas já teve esse livro em lugares que foi barrado porque o pai era separado.
09:00Então, assim, não dá para entender.
09:03Tem um outro livro nosso também.
09:06Não vou ficar falando aqui o tempo todo também de censura, porque se eu for falar nesse capítulo,
09:11de censura, são as agruras que os editores passam.
09:15Censura é algo que voltou com força em pleno século XXI.
09:19Porque a censura tem ondas, ela vem em ondas.
09:22Agora nós estamos vivendo um momento de censura na literatura infantil e juvenil.
09:27Então, temos casos recentes com o livro do Ziraldo, etc.
09:31Esse livro do José Mauro Branche, que eu citei, que foi, inclusive, retirado do Programa Nacional de Literatura do Governo Federal
09:40por reclamações, que não foi bem entendido, embora tivesse uma defesa muito sólida dos avaliadores do livro.
09:49Mas, mesmo assim, o ministro de então mandou retirar o livro do programa.
09:56E livros que nós temos hoje, a Masa, por exemplo, teve um livro de uma autora dela, da Kiusan de Oliveira,
10:04que fala das orixás, esse livro também foi retirado de uma escola,
10:09mas nós entramos com uma interpelação extrajudicial, e aí o livro voltou, mas gerou aquela celeuma,
10:18porque alguns pais disseram que não podia falar de orixás com as crianças.
10:24Quer dizer, a cultura brasileira, nós temos até lei, uma lei de 2003, a lei 10.639,
10:30que define, determina que a cultura africana e indígena, que faz parte da formação do povo brasileiro,
10:40tem que ser ensinada na escola também.
10:43Então, não adianta espernear nesse aspecto, porque hoje é lei.
10:48Então, toda vez que alguém disser que não pode colocar na escola livros que datem de temas
10:57da cultura afro-brasileira e indígena, é mentira, porque tem lei que garante que essas culturas fazem parte, sim.
11:07Essa hora é que entra a justiça, entra o direito, infelizmente, que tantas vezes tem sido acionado o judiciário
11:16para dizer, não, esse livro não tem nada de mais, esse livro pode ser adotado por essa escola,
11:21como aconteceu no caso do Ziraldo, o livro do Ziraldo, o Menino Marrom, lá em Conselheiro Lafayette.
11:28O juiz de lá teve que dar uma ordem para o livro voltar para a escola.
11:32Então, quando a gente precisa terceirizar para o judiciário,
11:37porque o judiciário é um terceiro que vai mediar aquele conflito e resolver aquele conflito.
11:43Quando a gente precisa entregar para a justiça resolver alguma coisa da literatura,
11:50eu acho que isso é um grande retrocesso, mas não há outro jeito.
11:55No caso de Lafayette teve que ser assim, precisou do judiciário.
11:58Ainda bem que temos o judiciário para dizer, não, não tem problema nenhum, isso pode.
12:04Para dizer que é isso, tem uma lei aqui que garante isso.
12:07Infelizmente, tem que recorrer, embora no mundo ideal não precisasse.
12:14Era só deixar com os professores, com os mediadores de leitura.
12:19BH já há bem tempo é polo produtor de boa literatura,
12:27é um polo de fomento, é um hub de nascimento de editoras.
12:35Nós temos editoras desde as nano-editoras até grandes, em Belo Horizonte.
12:42Nós temos editoras pequenininhas, que publicam zines,
12:47que publicam livros quase que artesanais.
12:51E nós temos editoras pequenas, charmosas, que publicam coisas
12:56e que produzem um trabalho belíssimo.
12:58Sabe, grandes autores, sobretudo na literatura infantil,
13:02tanto no texto quanto na ilustração.
13:04Gente premiada no mundo, não é só no Brasil, é no mundo.
13:09Gente que é para a gente se orgulhar disso.
13:12Mas eu sempre viajo muito e as pessoas falam,
13:15como que vocês são silenciosos?
13:17Eles falam, vocês botam tantos ovos lindos e cacarejam muito baixo.
13:22Eles falam que nós mineiros somos silenciosos.
13:25Então, eu fico muito feliz de ver todo esse trabalho, esse movimento,
13:32para mostrar para todo mundo que Belo Horizonte é, de fato, um polo literário,
13:38é uma capital com uma vocação leitora e literária fortíssima,
13:44cheia de histórias, de autores.
13:47Tantos encontros, então, eu acho que agora está na hora de Belo Horizonte,
13:52da gente se orgulhar de estar, como eu digo sempre, na nossa capital,
13:58no nosso país BH.
14:00Então, esse país BH tem coisas lindas,
14:03tanto na cena literária, mercado editorial e livreiro cada vez mais aquecido,
14:10com boas editoras, fazendo um belo trabalho,
14:13exportando, revelando talentos para o mundo.
14:17Obrigado.
14:18Obrigado.

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