- há 2 dias
Joanna e Daniela contam como o pai, chef Paulo Martins, cultivava o amor pelos ingredientes amazônicos e legou o conhecimento de que o sustento da vida na Amazônia vem todos os dias da floresta.
Imagens: Thiago Gomes
Reportagem: Eduardo Rocha
Imagens: Thiago Gomes
Reportagem: Eduardo Rocha
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NotíciasTranscrição
00:00A gente fundou o Instituto em 2012, foi uma iniciativa da família e dos amigos do Paulo
00:05para dar continuidade ao trabalho dele.
00:08Chegou o momento em que a gente percebeu que o que ele fazia era muito além de um negócio,
00:12que precisava ter uma instituição sem fins lucrativos, para dar continuidade,
00:17tanto no festival, que era a ação mais direta, que a gente retomou depois do falecimento dele,
00:24mas também já entendendo que a gastronomia aparência já estava num outro momento,
00:29o Instituto já foi fundado com um olhar de educação, de registro do conhecimento,
00:35de sistematização do conhecimento e de transparência desse conhecimento a respeito da nossa gastronomia.
00:41E aí, a gente entendendo esse cenário, o Instituto foi fundado em 2012 com os pilares mesmo,
00:47da pesquisa, da investigação, de entendendo todas essas raízes, todas essas influências históricas,
00:53da educação e da promoção, que era aquilo que ele começou fazendo,
00:57que a gente brinca que ele começou pelo fim, porque em geral no plano de negócios a divulgação é a última etapa,
01:05e ele começou divulgando para agora a gente estar indo para outros,
01:08dando alguns passos para trás para fortalecer ainda mais essa gastronomia tão rica.
01:13A presidente do Instituto é a Tânia, minha mãe, a vice-presidente é a Daniela,
01:17e eu sou a diretora executiva.
01:18Operacionalmente, eu estou à frente do dia a dia, mas hoje a gente tem uma equipe de cinco mulheres
01:25que fazem o Instituto acontecer.
01:27Olha, ele era uma pessoa muito criativa e inquieta.
01:31Eu costumo dizer que ele não gostava de fazer a mesma coisa.
01:35Isso até era uma dificuldade, porque enquanto empreendedor, que tocava um negócio,
01:40mas a gente tinha uma equipe muito boa que tocava esse dia a dia do negócio,
01:44porque o que ele gostava realmente na cozinha era de inventar, né?
01:48E ele era como uma criança descobrindo as coisas, né?
01:51Quando ele descobria um ingrediente novo, seja porque ele fez uma viagem
01:55ou porque ele foi lá na banca da Carmelita do Ver o Peso, que sempre traz novidade para a gente.
02:00Então, ou que ele lia algo que despertava também os insights dele,
02:05porque eu acho que a grande diferença que ele fez para a nossa gastronomia,
02:10o primeiro foi de valorizar, que na verdade isso começou lá com a dona Ana, minha avó, né?
02:14De olhar, de enxergar valor, de apresentar de uma forma que as pessoas dessem valor.
02:19Mas a inquietude dele era de usar os nossos ingredientes de forma diferente, né?
02:25Ele não queria, ele valorizava muito a tradição, mas ele queria renovar essa tradição.
02:30E aí era como uma criança descobrindo coisa nova, né?
02:33Ficar empolgado, ficar feliz, testa, se estressa,
02:36porque muitas vezes o teste não funciona como a gente imagina e aí refaz, né?
02:42Então, as lembranças que eu tenho dele são muito pautadas nisso, né?
02:46Nesse olhar de descoberta, de criação, de experimentação e de felicidade e de estresse também,
02:54porque nem sempre dá certo.
02:56Eu acho que esse amor pela nossa culinária, né?
02:59De valorizar aquilo que a gente tem,
03:01porque hoje, talvez seja muito fácil a gente falar sobre a nossa gastronomia com muito orgulho, né?
03:07Falar pra todo mundo, porque a gente é reconhecida internacionalmente.
03:11Mas há 40, 50 anos atrás, a gente, para isso, não dava valor pra essa comida.
03:16E eles mudaram essa história, entendeu?
03:18Então, e quem começou foi ela, né?
03:21Foi ela que começou a dar valor,
03:24porque dentro da casa dela esse valor existia,
03:26e ela só queria que isso se tornasse mais amplo, que saísse da família.
03:30E isso ela transferiu pra ele e transferiu pra gente também, né?
03:34Isso é outra coisa super importante, né?
03:36Porque hoje é fácil fazer um trabalho de divulgação.
03:39É muito mais fácil, na verdade.
03:40Não seja fácil mesmo, porque nem sempre é tão simples assim.
03:44Mas naquela época, e assim, foi um trabalho também que não aconteceu de uma hora pra outra, né?
03:49Foram cerca de 20 anos.
03:51O próprio festival, ele já acontece há 25 anos.
03:54Então, a cada ano, a gente traz 20 chefes, alguns jornalistas,
03:59e essas pessoas, e é a coisa de reverberando, né?
04:03É como se fosse uma gota que foi jogada ali no rio,
04:06e ela foi, aquela gota, ela vai ampliando, né?
04:09O alcance dela.
04:10E é isso que vem acontecendo, e ainda continua acontecendo.
04:14Mas também, pra que continue, é preciso que outras gotas sejam jogadas,
04:18porque às vezes só aquela, uma hora, ela se dilui, né?
04:21Um tanto de água.
04:22E é isso que a gente vem tentando fazer no Instituto, também, né?
04:25Dar continuidade a esse trabalho, que começou com a minha avó,
04:28foi amplificado pelo meu pai, né?
04:31Mas que precisa continuar sendo pego,
04:33pra que também isso ao longo do tempo não morra.
04:36Eu brinco, né?
04:37Que eu não tive escolha.
04:39A Joana, tu tivesse de sim.
04:41Não, por que eu brinco que eu não tive escolha?
04:43Nós somos quatro netas, né?
04:46Três moram em Belém, uma mora fora.
04:48Eu, das três netas de Belém, eu convivi e vivi no Lá em Casa,
04:53a minha vida inteira, né?
04:55Na doceria, na época que eu Lá em Casa, no primeiro Lá em Casa,
04:58que era na Casa da Vovó, eu era neta que ficava perturbando as doceiras.
05:02Então, a minha vida inteira foi, entre aspas, trabalhando.
05:06Porque pra gente, quando criança, era trabalho.
05:09Né?
05:09E pior, sem regulação, só com direito a comer doce.
05:12Mas era uma brincadeira, que a gente levava a sério muitas vezes.
05:16A gente, eu brinco, que o papai era aquela pessoa que se a gente dissesse assim,
05:19eu faço tal coisa, a gente era literalmente obrigado a fazer.
05:23Assumiu a responsabilidade, tu vai tomar de conta.
05:27Seja com três anos ou com cinquenta anos.
05:30Então, eu sempre convivi no Lá em Casa.
05:32E eu cresci dizendo que o Lá em Casa seria meu.
05:36Quando o papai caiu doente, porque eu sempre trabalhei no Lá em Casa,
05:38minha carteira assinada, uma empresa, era o Lá em Casa.
05:41E quando o papai caiu doente, eu tava sem fazer nada.
05:45Eu tava em casa, cuidando das filhas e um pouco da saúde dele.
05:49E a mamãe chamou a gente e disse assim, ó, a gente precisa reorganizar isso.
05:53Filha, vai pra estação e vai fazer as compras no Verupês pra gente diminuir o custo.
05:59E aí tá, gente, eu saí da minha casa oito, nove e meia, eu estarei em casa.
06:02Eu vou, porque a minha função era essa.
06:03Eu ia dizer, ah não, pelo amor de Deus, eu não saí de casa pra passar uma hora e meia,
06:06eu sentava e ficava ali na cozinha.
06:08E começava, mãe, tal coisa tá errada.
06:11Mãe, não tão fazendo a receita do papai.
06:13Mãe, não sei o quê.
06:14E com isso eu fui assumindo.
06:15Por isso que eu brinco, porque eu digo que eu não tive a opção.
06:18Né, a opção eu tive, lógico.
06:20Nada foi imposto, mas foi uma coisa natural.
06:22E eu acho que de filha, de tanto conviver, de saber os processos, do conhecimento,
06:27eu tinha muito pouco habilidade na cozinha.
06:30Porque eu cozinhava em casa, o papai nunca permitiu que a gente entrasse na cozinha do restaurante.
06:35Então, a minha experiência na cozinha do restaurante, às vezes, era um dia de sufoco.
06:41Ele disse assim, vai fazer caranguejo, que eu sei que o caranguejo é bom.
06:44Né, mas eu aprendi tudo com ele.
06:46Então, a minha segurança era porque tudo que se falava de gastronomia paraense, eu tinha ele como referência.
06:52Eu viajava muito com ele, então, todas as vezes que ele ia fazer um evento fora,
06:56que ele levava um componente que eu era, que ele dava aula, ele me obrigava, assim, a assistir a aula.
07:02Não era aquela história, a minha componente vai passear, não.
07:05Vai ficar ali assistindo.
07:06Então, as dúvidas, ainda na época que ele ainda estava bem, mesmo na cama, mas ainda bem.
07:11Pai, estão fazendo tal coisa, eu sei que não é assim.
07:13Pai, me ensina.
07:14Como era?
07:15Ele me ensinava, mesmo que não estando mais na cozinha.
07:18Então, assim, para mim foi muito fácil abraçar esse legado.
07:23Com um peso muito grande, porque existe a comparação, sim.
07:27Principalmente no início, hoje em dia se compara, eu não estou no evento.
07:31Mas logo no início tinha uma carga muito grande.
07:34E eu disse assim, não sou ele.
07:35Pelo amor de Deus, não me cobre porque eu não sou ele.
07:38Mas eu entendo que ele me ensinou, eu entendo que esse legado foi uma coisa que eu assumi com prazer.
07:44E não sei fazer outra coisa.
07:46Eu digo que a Daniela, quando a gente decidiu que eu sairia da cozinha do Lá em Casa,
07:52que foi um pouco antes da pandemia, a mamãe disse, o que é que tu vai fazer assim?
07:56Mas eu sei fazer uma coisa, cozinhar.
07:58Então, está no sentimento.
08:01Assim, a Daniela não sabe.
08:03A Daniela cresceu fazendo evento, a Daniela gosta dessa overdose, dessa adrenalina.
08:08E eu digo assim, o papai, ele passou isso pra gente.
08:12Eu digo que o papai foi ocupado, o papai era um louco, um maluco.
08:15Mas a gente que gosta de ter adrenalina, que é o que ele adorava.
08:19O papai era aquelas pessoas que, do nada, ele montava um evento em uma semana pra mil pessoas.
08:25E pra ele era adrenalina boa.
08:28A Daniela tem isso.
08:29Então, talvez, o legado, ter assumido a responsabilidade, foi a injeção de adrenalina, que é o erro dele.
08:36Essa movimentação de adrenalina.
08:38Ah, Jô, é mais calma.
08:39É, eu já fui pra um outro lado, né?
08:41Eu trabalho com a cozinha, mas de outra forma.
08:46Acho que dando continuidade também ao trabalho dele na manioca,
08:49onde a gente leva esses ingredientes da Amazônia pro resto do Brasil,
08:53porque também não dá pra fazer gastronomia paraência amazônica fora daqui,
08:56se não tiver os nossos ingredientes.
08:58Então, foi um outro jeito, um jeito, talvez, inovador,
09:00porque eu acho que aí eu não herdei esse lado do cozinheiro,
09:05mas eu herdei esse lado da inovação e de querer, talvez, atender necessidades reais do mercado.
09:11E através do Instituto, que aí já é um lado, realmente, do ensinado,
09:14transferir o conhecimento.
09:15Então, eu brinco que, assim, o que ele fazia era tão grandioso
09:18que precisou de três empresas, na verdade, né?
09:22Porque o Instituto não é uma empresa, mas é uma instituição,
09:24pra poder dar continuidade a tudo que ele começou.
09:27A gente conseguiu se dividir, a verdade é isso.
09:29Eu acho que a gente, pra falar de Amazônia, falando de biodiversidade,
09:35falando de ingredientes, o ingrediente é a nossa expressão.
09:38A gente não fala da Amazônia.
09:40A floresta não é floresta se a gente não tirar os ingredientes.
09:43Senão, vão ser um bando de árvores que estão ali pra tomar conta pra uma questão ocupacional,
09:50uma questão de ar, temperatura, mas ela não vai ser mantida.
09:55Porque isso não é o suficiente.
09:57Da frente a que a gente começa a pensar que é de lá que a gente tira o nosso sustento,
10:02a nossa alimentação, é a base da gente querer preservar.
10:06Eu acho que quando se fala hoje muito de ecologia, de biodiversidade, de clima,
10:13a gente tem que entender que a floresta precisa ficar em pé, não pelo clima, mas pelo alimento.
10:20E se a gente não respeitar isso, a nossa tradição, a nossa gastronomia vai embora.
10:26Vamos falar de economia.
10:29Quando o pessoal da borracha veio querer fazer em larga escala, a Amazônia isso não funcionou.
10:36Tanto que a Pirelli faliu.
10:38Por quê?
10:38Porque existe nada nosso, nada da Amazônia a gente consegue plantar em larga escala sem prejudicar a uma.
10:46Então, a mandioca, se você for fazer, sei lá, 100 mil hectares de mandioca, vai dar besteira.
10:52Ela precisa das outras plantas cobrindo, das outras biodiversidades pra que ela cresça.
10:58O pessoal da canta já entendeu que não adianta ter uma plantação de cupua sul.
11:03É todo mundo misturado e a gente tem uma grande floresta que vai dar.
11:08Então, o nosso ingrediente, a Amazônia, ela só é rica porque a gente tem que valorizar os ingredientes.
11:13Senão, não existiria a Amazônia.
11:14E vem muito da cultura, né?
11:16Que os nossos povos, quem vive aqui há tantos anos, aprendeu a lidar com essa floresta.
11:21E isso é a cultura.
11:23Porque a floresta sozinha, ela é só o ingrediente lá também.
11:26A gente tem que saber usar esse ingrediente da melhor forma.
11:29Seja ele pro alimento, pro cosmético, pra medicina.
11:32E os nossos povos têm esse conhecimento.
11:35A gente herdou isso.
11:37A forma como hoje a Daniela faz a comida, ou como hoje eu faço um tucupi, vem desse conhecimento.
11:42E o que a gente vai fazendo é só atualizar.
11:45Que foi o que o Paulo fez na gastronomia também.
11:47Modernizar.
11:48Modernizar, atualizar.
11:49Trazer pro nosso tempo, porque o mundo vai mudando.
11:52Esse conhecimento ancestral.
11:53É, e eu acho que exatamente a modernização, quando a gente fala de modernização, não
11:58é para que a gente leve o ingrediente ou sacrifique o nosso hábito alimentar.
12:05É para que os ingredientes cheguem na mesa de mais pessoas e que eles continuem sendo
12:11produzidos.
12:12Porque o que a gente...
12:13E consumidos.
12:14Porque o que a gente vê muito de determinados ingredientes é que sumiu.
12:18Por quê?
12:20Porque era um sininhozinho que fazia daquela forma artesanal, que não conseguia produzir
12:25em larga escala e que os filhos saíram da zona rural para vir para a cidade.
12:30Talvez ser um cozinheiro, ser um faxineiro, talvez seja um doutor.
12:35Mas que ele não tem mais interesse em ficar na roça porque vai morrer de fome, porque
12:41nunca vai ter... não tem oportunidade de crescimento.
12:44Sim.
12:44E aí com a modernização, a gente... com as máquinas, a gente faz aquele sininhozinho.
12:49Em vez de produzir uma caixa, produzir dez.
12:51ter uma valorização do ingrediente dele e fazer com que macho mesmo.
12:57Eu falo muito do biju.
12:58Biju é aquela bolachinha de farinha.
13:00Ninguém usava.
13:02Hoje, eu já sei que tem várias outras pessoas, mas existia um sininhozinho que fazia.
13:07E se ele morresse, acabava.
13:09Hoje a gente já conseguiu que outras pessoas se interessassem.
13:12Por quê?
13:12Porque tudo que é restaurante hoje não é levante.
13:14Hoje o biju é a coisa mais escutada.
13:16Ou seja, talvez o filho desse senhor que veio para a capital já esteja voltando com
13:21o maquinário, com uma maneira mais fácil de fazer e mais rápida para que ele produza
13:25mais.
13:25Então, eu acho que essa divulgação, essa modernização é isso.
13:27E a atualização, seja do processo, seja da forma de servir, seja de como apresentar
13:33esse produto.
13:34Não precisa necessariamente essa história ficar estante.
13:37Ela pode ser atualizada para que esse consumo continue e esse mercado cresça.
13:42E o papai tinha muito disso.
13:43O divulgar não era só para uma questão de restaurante.
13:48Era uma questão de valorização principalmente do produtor.
13:52Porque eu acho que sem o produtor não chega produto.
13:55Não existe chefe, não existe restaurante.
13:58Muito menos a Amazônia.
14:00Daí ele junto com as boeiras.
14:02Exatamente.
14:03A valorização das boeiras do ver o peso.
14:05Gente, elas fazem comida uma vida inteira.
14:07Nunca ninguém tinha olhado.
14:09A sociedade olhava para aquilo com um olhar de menosprezo.
14:12Poxa, elas são grandes.
14:14A maioria já tem restaurante fora.
14:16É uma super valorização.
14:17Já fizeram eventos fora.
14:19Ou seja, é mostrar que todos nós temos valor.
14:22Todos nós sabemos.
14:23Todos nós temos justamente um conhecimento ancestral.
14:27Cada um tem a sua maneira de fazer.
14:29Porque não existe uma receita única.
14:30Não existe de forma certa também.
14:32Mas a gente consegue envolver todo mundo.
14:35Então, vamos lá.
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