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  • 07/05/2025
No livro Críton de Platão (📚https://amzn.to/46jegde), Sócrates está na prisão e seu amigo Críton tenta convencê-lo a fugir para evitar a execução. Sócrates recusa a fuga, argumentando que é injusto e prejudicial à sociedade. Ele enfatiza a importância de obedecer à lei e aceitar a morte quando se age com justiça. O diálogo explora questões morais e éticas, destacando a coragem de Sócrates em manter seus princípios até o fim, mesmo diante da morte iminente.

Gênero: Ética

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Transcrição
00:00Livro, Criton, autor Platão, cena, uma cela na prisão de Atenas, Sócrates dorme profundamente,
00:11Critão entra na cela antes do amanhecer, Critão, por que viestes a estas horas, Critão?
00:18É madrugada ainda, não é? Critão, perfeitamente, Sócrates, que horas, precisamente, Critão,
00:28Mal começa a clarear, Sócrates, admira-me que o guarda da prisão te haja atendido, Critão,
00:36Ele já se acostumou comigo, Sócrates, de tanto eu frequentar este lugar, ademais, deve-me
00:43alguns favores, Sócrates, acabas de chegar ou faz tempo, Critão, faz já algum tempo, Sócrates,
00:52Então, por que não me acordaste logo e sentaste aí calado? Critão, é que, por Zeus, Sócrates,
01:01em teu lugar, eu não gostaria de passar muito tempo acordado numa aflição assim, estou
01:07mesmo admirando, há tempo, a placidez do teu sono. Não te acordei de propósito, para
01:13que pudesses gozar quanto mais dessa tranquilidade. Já muitas vezes antes, em toda nossa vida,
01:20te considerei feliz pelo teu gênio, porém muito mais agora, na presente desgraça, pela
01:27facilidade e brandura com que a suportas. Sócrates, realmente, Critão, eu destoaria, se na minha
01:35idade, me agastasse por ter de morrer em breve. Critão, outros também, Sócrates, passam por
01:42provações assim na mesma idade. No entanto, os anos não os dispensam de se agastarem com
01:48a sorte que lhes toca. Sócrates, assim é. Mas, afinal, para que vieste tão cedo? Critão,
01:57para trazer uma notícia, Sócrates, dolorosa e desoladora, não assim para ti, pelo que
02:03vejo, mas dolorosa e desoladora para mim e para todos os teus amigos, acho que a poderia
02:09contar como uma das que mais o sejam. Sócrates, que vem a ser? Chegou de Delos o navio a cuja
02:17chegada devo morrer? Critão, bem, chegar não chegou, mas calculo o que deve aportar hoje,
02:24pelo que noticiam pessoas vindas de Súnio e que lá o deixaram. As novas dão a entender
02:30que vai aportar hoje, e será fatalmente amanhã. Sócrates, que terás de cessar de viver? Sócrates,
02:37Pois bem, Critão, a boa aventura. Se assim apraz aos deuses, assim seja. Todavia, acho que não vai
02:47aportar hoje. Critão, em que te baseias? Sócrates, vou dizê-lo. Devo morrer, penso, no dia seguinte ao
02:58da chegada do navio. Critão, ao menos assim dizem as autoridades competentes. Sócrates, por isso,
03:06acho que não vai aportar no dia de hoje, mas no de amanhã. Baceio-me num sonho que acabo de ter
03:13esta noite. Talvez mesmo tenha sido oportuno não me haveres despertado. Critão, como foi o sonho?
03:22Sócrates, parecia-me que vinha uma mulher formosa, de lindas feições, vestida de branco, me chamava e
03:29dizia. Sócrates, depois de amanhã poderás ter chegado às férteis campinas de Fétia. Critão,
03:37sonho esquisito, Sócrates. Sócrates, de sentido claro, ao que penso, Critão. Critão, por demais,
03:47penso eu. Contudo, meu pobre Sócrates, ainda uma vez, dá-me ouvidos e põe-te a salvo. Porque,
03:54para mim, se vieres a morrer, a desdita não será uma só. A parte a perda de um amigo como não acharei
04:01nenhum igual, acresce que muita gente, que não nos conhece bem, a mim e a ti, pensará que eu,
04:08podendo salvar-te, se me dispusesse a gastar dinheiro, não me importei. Ora, existe reputação
04:15vergonhosa do que há de fazer caso do dinheiro que dos amigos? O povo não vai acreditar que tu é que
04:22não quiseste sair daqui, a despeito de o querermos nós mais que tudo. Sócrates, mas para nós, meu caro
04:29Critão, é tão importante assim a opinião do povo? A gente melhor, com quem mais importa que nos
04:36preocupemos, cuidará que as coisas se terão passado tal como se tiverem passado. Critão, mas bem vês,
04:44Sócrates, que não se pode deixar de fazer caso também da opinião do povo. Os fatos mesmos de agora
04:51dizem claro que o povo é capaz de fazer, não os mais pequeninos dos males, mas como que os
04:57maiores, basta que entre eles se espalhem calúnias contra alguém. Sócrates, Oxalá, Critão, fosse o povo
05:05capaz de praticar os maiores males, para ser capaz também dos maiores benefícios. Seria esplêndido.
05:13Não o é, porém, nem destes nem daqueles. Incapaz de dar o siso, bem como de tirá-lo,
05:21ele obra o sabor do acaso. Critão, vá lá que assim seja. Mas dize-me uma coisa, Sócrates,
05:29estás procurando evitar, não é? Que eu e os outros amigos teus, caso saias daqui, venhamos a ser
05:36molestados pelos sicofantas, sob acusação de te subtrair daqui, e obrigados a abrir mão de todos
05:43os nossos haveres, ou pelo menos de grossas quantias, ou a sofrer, além disso, qualquer outra pena.
05:50Se é isso que temes, manda o medo às urtigas. É justo que nós, para salvar-te, corramos esse perigo,
05:59e maiores ainda, se for preciso. Vamos, dá-me ouvidos e não proceda de outra maneira.
06:06Sócrates, estou evitando isso tudo, Critão, e muitas outras coisas.
06:13Critão, pois não tenhas esse receio. Não é muito dinheiro que certas pessoas querem receber
06:19para levar-te daqui e salvar-te. Depois, não vês como são baratos esses sicofantas?
06:26Que não seria preciso gastar muito com eles. Os meus haveres estão à tua disposição e acho que são
06:33suficientes. Além disso, caso apreensivo por mim, te pareças não devais despender o meu. Aí estão
06:40aqueles estrangeiros, prontos a gastar. Um, até trouxe exatamente para isso dinheiro suficiente,
06:47símias de tebas. Sebes também está pronto e muitíssimos outros. Por isso, repito, não seja por este
06:55receio que desistas de te salvar. Tampouco te embarasses, como dizia no tribunal, com a possibilidade
07:02de, partindo, não teres do que viver. Em muitos lugares, mesmo no exterior, onde fores parar,
07:09acharás amizade. Se quiseres ir para Tessália, tenho lá hóspedes que te darão grande apreço e te
07:16oferecerão segurança. De sorte que ninguém na Tessália te molestará. Demais, Sócrates, acho que cometes
07:24uma injustiça entregando-te. Quando te podes salvar, estás trabalhando para que te aconteça
07:30exatamente aquilo a que visariam teus inimigos. Há que visaram quando decidiram tua perda.
07:37Demais a mais, ao meu ver, atraiçoa também os teus filhos. Podendo criá-los e educá-los,
07:43tu queres ir-te, abandonando-os. No que te concerne, fiquem eles entregues a sua sorte. A deles,
07:50é natural, será a sorte costumeira dos que caem na orfandade. A gente deve ou não ter filhos,
07:57ou sofrer juntamente com eles, criando-os e educando-os. Tu me dás a impressão de estarem
08:03escolhendo a sua maior comodidade. Deve-se, porém, escolher o que escolheria um homem bom e de brilho,
08:11ao menos quando vives dizendo não ter outra preocupação na vida senão a virtude. Eu, sabes?
08:18Tenho vergonha por ti e por todos nós, os teus amigos, de que atribuam a covardia de nossa parte
08:24tudo o que aconteceu contigo, o teu comparecimento diante do tribunal, quando podias deixar de
08:30comparecer, a maneira pela qual o processo mesmo correu. Por fim, este desfecho, como que o mais
08:37ridículo da história, a impressão de que nos esgueiramos, covardes e sem brilho, sem termos
08:43providenciado, nem nós outros nem tu, a tua salvação, possível e realizável se tivéssemos
08:50algum préstimo. Evita, Sócrates, que essa pecha, em acréscimo a tua desgraça, caia sobre ti ou sobre
08:59nós. Vamos, resolve-te, que já não é tempo de resolver, mas de ter resolvido. Só há, porém,
09:06uma resolução, e tudo deve estar feito na noite de hoje. Se nos demorarmos mais, já
09:13não será mais realizável nem possível. De toda forma, Sócrates, dá-me ouvidos e não
09:19procedas de outra maneira. Sócrates, querido Critão, quão precioso o teu ardor, se alguma
09:27retidão o acompanhasse. Não sendo assim, quanto mais insistente, tanto mais penoso.
09:34Temos, pois, de examinar se devemos proceder como queres ou não. Quanto a mim, não é de
09:41agora, sempre fui deste feitio, não cedo a nenhuma outra de minhas razões, se não
09:47há que minhas reflexões demonstram ser a melhor. As razões que alegava no passado, não as posso
09:53enjeitar agora em vista de minha sorte presente. Elas se me apresentam como que inalteradas.
09:59São as mesmas de antes as que estou respeitando e acatando. Se nestas conjunturas, não temos
10:05outras melhores para alegar, fica certo de que não cederei absolutamente a tuas instâncias,
10:11ainda que, com mais ameaças que as atuais, nos assene o poderia da multidão, como a crianças,
10:18com o espantalho das prisões, mortes e confisco de bens. Como, portanto, faremos tal exame o
10:26mais acuradamente possível? Será retomando, em primeiro lugar, aquela razão que alegas
10:33a propósito das opiniões? Estávamos certos ou errados ao repetirmos que das opiniões umas
10:39devemos acatar, outras não? Ou antes, de eu ter de morrer, era acertado dizê-lo, mas
10:46agora se patenteou, não é assim? Que falávamos por falar, mas não passava de brincadeira,
10:53futilidade? Francamente, Critão, desejo examinar contigo se aquela razão se nos apresentará
11:00um tanto modificada em vista da minha situação, ou idêntica, e se as mandaremos às urtigas,
11:07ou lhe obedeceremos. Costumavam dizer, creio eu, os que presumem falar seriamente, mais ou
11:13menos o mesmo que eu próprio dizia pouco. Que, das opiniões que os homens formam, a
11:19uma se deve grande acatamento, a outras não. Pelos deuses, Critão, não te parece uma boa
11:26norma? Porque tu, tanto quanto alcançam as previsões humanas, não estás em vias de
11:32morrer amanhã, nem poderia ser abalado teu juízo pela adversidade presente. Portanto,
11:38reflete, não achas acertado dizer que nem a todas as opiniões dos homens se deve acatamento,
11:45mas a uma sim e outras não? E não as de todos, mas as de um sim e as de outros não? Que dizes?
11:53Não é com razão que se diz isso? Critão, é com razão. Sócrates, logo, acatar as boas,
12:01não as ruins. Critão, perfeitamente. Sócrates, boas não são as dos judiciosos, ruins, as
12:11do sandeus? Critão, como não? Sócrates, ora bem, em que sentido se faziam tais distinções?
12:20Um homem que prática ginástica e segue aquela norma dá atenção ao louvor, à censura, ao parecer
12:26de toda gente ou somente ao de quem porventura é médico ou instrutor de ginástica. Critão,
12:33só ao deste. Sócrates, assim, deve temer as censuras e folgar com o louvor de único e não da
12:40multidão. Critão, evidentemente. Sócrates, deve, não é assim? Conforma suas práticas, seus exercícios,
12:50sua alimentação, sua bebida, somente com a opinião do mestre e entendido, de preferência
12:57a de todos os demais juntos. Critão, assim é. Sócrates, bem, se desobedece aquele único,
13:06se desacata ao seu parecer e ao seu louvor, para atender ao que diz a multidão que de
13:12nada entende, não sofrerá nenhuma consequência ruim? Critão, como não? Sócrates, qual é essa
13:20consequência ruim? Que extensão tem e onde atinge o desobediente? Critão, está se vendo
13:27que no corpo, porque é este que ele arruína. Sócrates, dizes bem. Portanto, Critão, para
13:35não passarmos tudo em revista, contudo mais se dá ao mesmo. Agora, quando ao justo e ao
13:41injusto, ao feio e ao belo, ao bem e ao mal, objetos desta nossa deliberação, devemos
13:47nós seguir a opinião da multidão e temê-la, ou a do único, se algum existe, entendido,
13:54a quem devemos respeitar e temer mais do que a todos os demais juntos? Se não obedecermos
13:59ao qual, corromperemos e danificaremos aquilo que melhora com a justiça e se arruína com
14:05a injustiça? Ou isto não tem cabimento? Critão, acho que tem. Sócrates. Sócrates, ora, pois,
14:15se aquilo que melhora com o regime saudável e se corrompe com o regime insalubre nós
14:20arruinarmos obedecendo a opinião que não é a dos entendidos, é-nos possível viver
14:26com essa parte arruinada? É ao corpo que nos referimos, ou não? Critão, sim. Sócrates,
14:34então, é-nos possível viver com o corpo em más condições, arruinado? Critão, de modo
14:41nenhum. Sócrates, podemos, porém, acaso viver depois de arruinar aquela parte que a injustiça
14:49danifica e a justiça beneficia? Ou considerarmos de menos valor que o corpo, aquela parte de
14:56nosso ser, seja qual for, com que se relaciona a injustiça e a justiça? Critão, de modo
15:03nenhum. Sócrates, de maior valor, então? Critão, muito maior. Sócrates, logo, meu excelente amigo,
15:13não é absolutamente com o que dirá de nós a multidão que nos devemos preocupar, mas
15:18com o que dirá a autoridade em matéria de justiça e injustiça, a única, a verdade
15:24em si. Assim sendo, para começar, não apontas o bom caminho quando nos prescreves que nos
15:30inquietemos com o pensamento da multidão a respeito do justo, do belo, do bem e de
15:36seus contrários. A multidão, no entanto, dirá alguém, é bem capaz de nos matar. Critão,
15:44isso é claro, Sócrates, haverá quem diga. Sócrates, dê certo. Mas, meu admirável amigo,
15:53essa razão que acabamos de rever ainda me parece substancialmente a mesma de antes. Examina
15:59também se continua de pé para nós este outro princípio, que não devemos dar máxima
16:04importância ao viver, mas ao viver bem. Critão, continua. Sócrates, e que viver bem, viver com
16:13honra e viver conforme a justiça é tudo um, continua de pé, ou não? Critão, continua.
16:21Sócrates, por conseguinte, partindo desses princípios nos quais concordamos, devemos averiguar
16:27se é justo que eu tente sair daqui sem permissão dos atenienses, ou injusto. Se se provar que é
16:33justo, tentemos. Se não, desistamos. As considerações que aduzes, de dispêndio de dinheiro, reputação,
16:42criação de filhos, critão, cuidado não sejam na realidade especulação próprias de quem, com a
16:48mesma facilidade, mataria, e se pudesse, ressuscitaria, sem nenhum critério a saber, a multidão.
16:56Nós, porém, pois que assim reside a razão, não sujeitemos à consideração nada além do que há pouco
17:02dizíamos. Se será procedimento justo dar dinheiro aos que me vão tirar daqui, suborná-los, nós mesmos
17:09promovendo a fuga e fugindo, ou se, na verdade, procederemos com injustiça em todos esses
17:16atos. Se se provar que cometeremos injustiça, não será absolutamente míster indagar se devo
17:22morrer, ficando quieto aqui, ou sofrer qualquer outra pena, antes do que praticar uma injustiça.
17:30Critão, acho que falas com acerto, Sócrates. Vê, pois o que devemos fazer? Sócrates, vejamos-lo
17:38juntos, meu caro, e se puderes de algum modo refutar-me, refuta-me e te obedecerei. Se não,
17:45cessa desde logo, meu boníssimo amigo, de insistir no mesmo assunto, de que preciso sair
17:51daqui contrariando os atenienses, porque dou muita importância a proceder com o teu assentimento
17:56e não malgrado o teu. Vê, pois, se te parecem satisfatórios os argumentos básicos deste
18:03exame e procura responder a minhas perguntas com a maior sinceridade. Critão, pois não,
18:10procurarei. Sócrates, asseveramos que não se deve cometer injustiça voluntária em caso
18:17nenhum, ou que em alguns casos se deve, em outros não, ou que de modo algum é bom nem
18:23honroso cometê-la, como tantas vezes no passado conviemos. E é o que acabamos de repetir.
18:30Porventura, todas aquelas nossas convenções de antes se entornaram nestes poucos dias,
18:36e durante tanto tempo, Critão, velhos como somos, em nossos graves entretenimentos não
18:42nos demos conta de que nada diferíamos das crianças. Ou, sem dúvida alguma é como dizíamos,
18:49quer o admita a multidão, quer não? Mas, ainda que tenhamos de experimentar momentos
18:56quer ainda mais dolorosos, quer mais suaves, o procedimento injusto, em qualquer hipóteses,
19:02não é sempre, para quem o tem, um mal e uma vergonha. Afirmamos isso ou não?
19:09Critão, afirmamos. Sócrates, logo, jamais se deve proceder contra a justiça.
19:16Critão, jamais, por certo. Sócrates, nem mesmo retribuir a injustiça com a injustiça,
19:25como pensa a multidão, pois o procedimento injusto é sempre inadmissível.
19:30Critão, parece que não. Sócrates, e daí? Devemos praticar maldades ou não?
19:38Critão? Critão, não devemos, sem dúvida. Sócrates.
19:42Sócrates, adiante. Retribuir o mal que nos fazem é justo, como diz a multidão, ou injusto.
19:52Critão, absolutamente injusto. Sócrates, sim, porque entre fazer mal a uma pessoa e cometer uma
20:00injustiça, não há diferença nenhuma. Critão, dizes a verdade. Sócrates, em suma, não devemos
20:09retribuir a injustiça, nem fazer mal a pessoa alguma, seja qual for o mal que ela nos cause.
20:16Cautela, porém, Critão, ao admitires esses princípios, não faças em contradição com
20:22o teu pensamento, pois sei que essa opinião é e será de alguns poucos. Entre os que a
20:28adotam e os que a repelem não existe um ânimo comum. Fatalmente se aquererão mal uns aos
20:34outros, ao verem os propósitos uns dos outros. Portanto, considera muito bem tu se comungas
20:40a minha opinião, se concordas comigo e se nossa deliberação partirá do princípio
20:45de que jamais é acertado cometer injustiça, retribuí-la, vingar pelo mal que fazemos o
20:51mal que nos fazem, ou se diverges e não coparticipas do princípio. Quanto a mim, essa é a opinião
20:57minha antiga, que ainda agora mantenho. Tu, porém, se tens outro sentir, fala, dá-me
21:05a conhecer. Se perseveras no de outrora, presta atenção ao que aí decorre.
21:10Critão, persevero, concordo contigo, por isso, prossegue.
21:16Sócrates, passo, então, às decorrências, ou melhor, pergunto se uma convenção que se
21:23firmou com alguém, sendo justa deve ser cumprida ou traída. Critão, deve ser cumprida.
21:30Sócrates, daí, presta atenção. Saindo daqui, desobedientes à cidade, lesamos alguém e logo
21:38a quem menos devemos lesar, ou não? E cumprimos as convenções justas que firmamos, ou não?
21:45Critão, não sei responder a tuas perguntas, Sócrates, não as estou compreendendo.
21:53Sócrates, bem, reflete no seguinte. Se, no momento em que eu estivesse para me evadir
21:59daqui, ou como quer que se diga, chegassem as leis e a cidade, assomassem perguntado,
22:06dize-nos, Sócrates, que pretendes fazer? Que outra coisa meditas, com a façanha que intentas,
22:13se não destruir-nos a nós, as leis e toda cidade, na medida de tuas forças? Acaso imaginas
22:21que ainda possa subsistir e não esteja destruída uma cidade onde nenhuma força tenham as sentenças
22:27proferidas, tornadas inoperantes e aniquiladas por obra de simples particulares? Que responder,
22:34Critão, a essas e semelhantes perguntas? Muitos argumentos poderiam ser aduzidos, sobretudo por
22:42um orador, em defesa da lei por nós violada que estabelece a autoridade das sentenças proferidas.
22:49Acaso responderei que a cidade me agravou, não me julgou, conforme a justiça? Direi isso? Direi o quê?
22:58Critão, isso mesmo, por Zeus, ó Sócrates. Sócrates, e se então, as leis dissessem, Sócrates,
23:06o que convencionaste conosco foi isso, ou que submeterias às sentenças que a cidade proferisse?
23:14Se me admirasse dessa pergunta, diriam, talvez, Sócrates, não te admires de nossas perguntas,
23:21mas responde-nos, porque tu também costuma lançar mão de perguntas e respostas.
23:27Vamos, pois, qual a queixa contra nós e contra a cidade, que te move a nossa destruição?
23:34Para começar, não fomos nós que te demos nascimento e não foi por nosso intermédio
23:39que teu pai desposou tua mãe e te gerou? Dize, apontas algum defeito naquelas dentre nós
23:46que regulam os casamentos? Achas que não estão bem feitas? Não aponto defeitos, diria eu.
23:55Então nas que regulam a criação e educação do filho, que também recebeste? Aquelas que de
24:01nós regem a matéria, ao mandarem que teu pai te ensinasse música e ginástica, não o
24:07fizeram com acerto? Fizeram, diria eu. Bem, depois que nasceste, que te criaram e que educaram,
24:16poderia, de começo, negar que nos pertences, como filho nosso e nosso escravo, assinto com
24:22teus ascendentes? E, se assim é, julgas ter ao menos os mesmos direitos que nós? Julgas
24:30ter o direito de fazermos em represália o mesmo que tentamos fazer a ti? Ora, em face
24:36do teu pai não terias os mesmos direitos, nem em face de teu amo, se amo tivesse, para
24:42retaliar o que te fizessem, nem para revidar doesto por doesto, golpe por golpe, nem para outros
24:48esforços. Mas, em face da pátria e das leis, se tentarmos destruir-te por assim acharmos
24:55de justiça, terás o direito de tentar, da tua parte também, dentro das tuas forças,
25:01destruir-nos em desforra a nós, as leis e a pátria. E dirás que, assim procedendo,
25:08obras com justiça tu, que verdadeiramente tomas a virtude a sério. Que sabedoria é
25:15a tua, se ignoras que, acima de tua mãe, teu pai e todos os outros teus ascendentes,
25:21a pátria é mais respeitável, mais venerável, mais sacrossanta, mais estimada dos deuses
25:27e dos homens sensatos. Que se deve mais veneração, obediência e carinho a uma pátria gastada
25:34do que a um pai. Que o dever é ou dissuadi-la ou cumprir seus mandados, sofrer quietamente
25:41o que ela manda sofrer, sejam espancamentos, sejam grilhões, seja convocação para ser
25:47ferido ou morto na guerra. Tudo isso deve ser feito e esse é o direito. Não esquivar-se,
25:53não recuar, não desertar o posto. Mas, quer na guerra, quer no tribunal, em toda parte,
26:00em suma, cumpre ou executar as ordens da cidade e da pátria ou obter a revogação
26:05palas vias criadas do direito. É impiedade usar de violência contra a mãe e o pai, mas
26:12ainda muito pior contra a pátria do que contra eles.
26:16Que responderei a isso, Critão? Que as leis dizem a verdade, ou que não?
26:22Critão, acho que sim. Sócrates, vê. Portanto, Sócrates diriam talvez as leis,
26:30temos razão em taxar de injusto o que intentas fazer-nos agora. Nós que te geramos, te criamos,
26:37te educamos, te admitimos a participação de todos os benefícios que podemos proporcionar
26:42a ti e a todos os demais cidadãos. Sem embargo, proclamos termos facultado ao ateniense que o
26:49quiser, uma vez entrada na posse dos direitos civis e no conhecimento da vida pública e de
26:54nós, as leis, se não formos de seu agrado. A liberdade de juntar o que é seu e partir
27:00para onde bem entender. Se, por não lhe agradarmos nós e a cidade, algum de vós quiser rumar
27:07para uma colônia ou quiser fixar residência em qualquer outro país, nenhuma de nós,
27:13as leis, o impede ou proíbe de seguir para onde lhe parecer, levando o que é seu. Mas quem
27:19dentre vós aqui permanece, vendo a maneira pela qual distribuímos justiça e desempenhamos
27:24as outras atribuições do Estado, passamos a dizer que convencionou conosco de fato cumprir
27:30nossas determinações. Desobedecendo-nos, é réu três dobradamente. Por que a nós que
27:36o geramos não presta obediência? Por que não o faz a nós que o criamos e por que,
27:41tendo convencionado obedecernos? Nem obedece nem nos dissuade se incidimos
27:46nalgum erro. Nós propomos, não impomos com aspereza o cumprimento de
27:51nossas ordens, e facultamos a escolha entre persuadir-nos do contrário e obedecernos.
27:58Ele, porém, não faz nem uma coisa nem outra. Tais são os crimes, Sócrates, em que, se puserem
28:06em prática o teu plano, te declaramos em curso, mais do que os outros atenienses.
28:11Se então eu perguntasse, como assim, talvez ralhassem comigo com razão, dizendo estar eu
28:18mais do que os outros atenienses preso àquele compromisso para com elas? Diriam, dispomos,
28:25Sócrates, de fortes provas de que nós e a cidade somos do teu agrado. Tu não terias
28:31assistido nela mais do que todos os outros atenienses, se ela não te agradasse mais do
28:36que a todos. Mas nem para uma festa jamais saíste da cidade, salvo uma única vez para
28:42os jogos do ístimo. Nem para qualquer lugar do exterior, a não ser como combatente. Nem
28:48outra viagem jamais empreendeste, como os demais, nem te deu vontade de conhecer outras
28:53cidades e outras leis. Mas nós e nossa cidade te havemos bastado. A tal ponto nos preferias
29:00e convinhas em seres cidadãos sob a nossa soberania. Por sinal que até geraste filhos
29:07nela, dando a entender que a cidade te agradava. Demais, mesmo durante o processo, se quisesses,
29:14podias obter a condenação ao exílio e fazer então, com o consentimento da cidade, o que
29:20pretendes fazer agora sem ele. Então, bravateavas tu que não te revoltarias, se houvesse de morrer,
29:28ao contrário, preferias, com declaravas, a morte ao exílio. Mas agora não fazes honra
29:34aquelas palavras, nem hesitas na tentativa de aniquilar a nós, as leis. Fazes o que faria
29:40o mais vil dos escravos, tentando a fuga contra as convenções e acordos, pelos quais te obrigaste
29:46para conosco aos deveres de cidadão. Responde-nos primeiro a esta pergunta. É verdade o que
29:52dizemos quando afirmamos que te obrigaste aos deveres de cidadão sob nosso império, não
29:58em palavras, mas de fato, ou é mentira. Que hei de dizer a isso, Critão? Posso discordar?
30:06Critão, forçosamente que não, Sócrates. Sócrates, que fases, diriam, se não ladear as convenções
30:15e acordos que conosco firmaste sem coação, sem engodo, sem a urgência de resolver em
30:21tempo exíguo, mas através de setenta anos, durante os quais te era facultado emigrar,
30:27se nós te desprazíamos e se descobrisses serem injustas as convenções? Mas tu não
30:33preferiste nem Esparta nem Creta, que vives dizendo dotadas de boas leis, nem qualquer das
30:38outras cidades, gregas ou estrangeiras. Daqui não te afasta-te mais do que os coxos, os
30:44cegos e outros mutilados, tanto, mais do que aos outros atenienses, te agradava a cidade,
30:51bem como nós, as leis, evidentemente. Pois há que agradaria uma cidade com exceção
30:56das leis? Agora, porém, não é? Não mantens os compromissos. Sim, Sócrates, tu os manterás,
31:06se nos atenderes, e não te sujeitarás ao ridículo de abandonar a cidade. Vamos, reflete,
31:13ladeando os compromissos e cometendo semelhante falta, que benefício trarás para ti e para
31:20teus amigos? Que teus amigos também correrão o perigo serem exilados e privados de cidadania
31:26e de seus bens, está fora de dúvida. Quanto a ti, para começar, se partires para uma das
31:32cidades mais próximas, digamos Tebas ou Megara, que ambas têm boas leis ali entrarás, Sócrates,
31:39como inimigo de suas instituições. Todos quantos elam por suas cidades te olharão de
31:44través. Como um destruidor das leis, consolidarás a reputação de teus juízes, de sorte que
31:51pareçam haver-te julgado escorreitamente, porque todo violador das leis bem pode ser tido
31:58como corruptor dos jovens e dos levianos. Ou acaso evitarás as cidades de boas leis e
32:05os homens mais morigerados. E valerá a pena viveres com esse comportamento? Ou entrarás
32:12em contato com eles e discorrerás, sem acanhamento, sobre o que, Sócrates? Sobre os teus assuntos
32:20daqui? Sobre o supremo valor que tem para a humanidade a virtude, a justiça, assim como
32:26a legalidade e as leis? E não achas que o papel de Sócrates se manifestará indecoroso?
32:33Tens de achar. Admitamos que, afastando-se desses lugares, vás para Tessália, para junto dos
32:41hóspedes de Critão, porque lá sobeja a desordem e a licença, e que sá gostariam de te ouvir
32:46contar como foi cômica a tua fuga da prisão, em travesti, metido num surrão de couro ou noutro
32:53disfarce habitual dos evadidos, e dissimulando esse jeito que é teu. Não haverá quem diga
32:58que, homem de idade, com pouco tempo provável de vida, não te pejaste de te agarres tão
33:04pegajosamente à existência, burlando as leis mais veneráveis. Talvez, se não magoares
33:11a ninguém, caso contrário, irás ouvir, Sócrates, indignidades incontáveis. Viverás
33:18de granjear o favor de toda gente, assujeitado, a fazer o quê? Se não levar a vida regalada
33:26na Tessália como se lá tivesse ido para um banquete? E aquelas palestras sobre a justiça
33:32e outras formas de virtude? Por onde nos andarão elas? Oh! Sim, é por amor dos filhos que desejas
33:41viver, para os criares e educares. Mas, daí? Vais levá-los para Tessália, torná-los
33:48estrangeiros de criação e formação, para que te fiquem devendo mais esse benefício?
33:54Ou não será assim? Será que, estando tu vivo e sendo eles criados aqui, terão melhor
34:01criação e formação sem a tua companhia, pois teus amigos é quem cuidarão deles? Então,
34:07se partires para Tessália, eles cuidarão, mas não onde cuidar se partires para o Hades? Se
34:14tem algum préstimo deveras os que protestam, amizade, has de admitir que sim. Não, Sócrates,
34:22ouve-nos a nós que te criamos. Não sobreponhas a justiça nem teus filhos, nem tua vida, nem
34:28qualquer outra coisa, para que, chegado ao Hades, possa alegar todas essas justificações
34:35perante os que lá governam. Está claro que, com aquele procedimento, aqui não será melhor,
34:41nem mais justo, nem mais pio, para ti nem para nenhum dos teus. Nem lá será melhor, quando
34:48tiveres chegado.
34:49Presentemente, partirás, se partires vítima de injustiça, não nossa, das leis, mas dos
34:56homens. Se, porém, te evades, retribuindo assim vergonhosamente a injustiça, o dano
35:01com o dano, logrando próprios compromissos e acordos conosco, em detrimento daqueles a
35:07quem menos devias lesar, de ti próprio, de teus amigos, da tua pátria e nosso. Nós,
35:13enquanto vive-lhes, estaremos indignadas contigo e, lá embaixo, nossas irmãs, leis do Hades,
35:21não onde te acolher com benevolência, sabedoras do que nos. Procuraste arruinar na medida de
35:28tuas forças. Oh! Não! Não possa mais Critão persuadir-te a fazer o que ele dirá com mais
35:35força do que nós. Essa recriminação, Critão, meu querido companheiro, fica certo, parece-me
35:43que as estou ouvindo, tal como aos coribantes parece estarem ouvindo o som das flautas, é
35:49a ressonância mesma dessas palavras que zumba no meu íntimo e não me deixa ouvir a outrem.
35:54Por isso, acredita-me, tanto quanto creio agora, o que disseres em sentido diverso, dilo-as em vão.
36:02No entanto, se esperas algum resultado, podes falar. Critão, não, Sócrates, não tenho
36:10o que dizer. Sócrates, então desistem, Critão, procedamos daquela forma, porque tal é o caminho
36:18por onde a divindade nos guia.

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