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Memória Nacional
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Transcrição
00:00Já vai sair?
00:01Já vai.
00:02Não para em casa.
00:04Não deu nem chance de matar a saudade, meu filho.
00:07Depois de uma ausência tão prolongada.
00:09Não exagere, dona Augusta.
00:10A gente já descurtiu muito depois de minha chegada.
00:12Eu sei, eu sei.
00:13Mas temos muita coisa pra conversar.
00:19Rodolfo, você sabe muito bem que estamos
00:22na rua da amargura, na casa do sem jeito.
00:25Na porta da miséria.
00:27Principalmente depois que a destrambelhada de Lívia
00:29resolveu zombar da sorte
00:32e injetar o melhor partido desta cidade.
00:36Mas é compreensível.
00:38É compreensível.
00:39Você, meu filho, herdou o sangue puro
00:42dos proença de Assunção.
00:45Já Lívia deve ter herdado o sangue
00:48em soço ralo, rosado do pai.
00:53Pensei que você gostasse do pai dela.
00:57Eu disse que não gostava.
00:58Não, não, não.
01:00Eu disse e reafirmo que Lívia não tem a fibra,
01:04a temperar de nossa família.
01:07Ou não teria rejeitado um casamento tão dor.
01:10Aquela ingrata.
01:11Não seja tão dramática, minha mãe.
01:13Rodolfo, você agora é a nossa última esperança.
01:18Só você pode me instigar dessa situação, periclete.
01:21E eu posso saber como?
01:26Casando com a herdeira rica
01:27ou arranjando um emprego
01:30que lhe dê pouco trabalho e muito dinheiro.
01:32Você acha que isso vai cair do céu assim,
01:34sem mais nem menos, aqui em minha cabecinha?
01:36Por que não?
01:37Caiu na Lívia!
01:38É.
01:39E ela rejeitou.
01:40Olha, eu prometo que vou pensar no assunto,
01:42mas agora você me dê licença, minha mãe.
01:45Eu tenho que sair.
01:45Não, não, não.
01:46Rodolfo, Augusto.
01:47Não vai mesmo.
01:47Espera, não vai ainda.
01:55Juventude, juventude.
01:56Eles pensam que tem a eternidade pela frente.
02:02Mal sabem que é só piscar os olhos e já é tarde demais.
02:10Dona Augusta?
02:12Falando sozinha?
02:14Estou falando sozinha assim, e daí?
02:17Prefiro mil vezes a minha própria companhia
02:20do que a de uma criatura toleimada feita em você.
02:23Credo.
02:24Também não preciso ofender.
02:25Chega de esturumela.
02:26E diga onde está a Leontina.
02:28Lá em cima, no quarto de Dona Lívia.
02:44Esse traste ainda existe.
02:51Essa mala tem sido minha companheira de ventura e desventura.
02:55Poupe-me dos detalhes sórdidos, Maria Leontina.
02:58Por mais velha e acabada que ela esteja, eu nunca vou jogar fora.
03:02Mas é a sua cara mesmo, viu?
03:04Como é que pode alguém se apegar a uma mala velha?
03:10Esse teu sentimentalismo barato, aliás, baratíssimo, me dá engulhos.
03:15Diga logo o que você quer e me deixa em paz.
03:18Com você eu não quero nada.
03:20Desistir de você faz tempo.
03:22Quero saber se a sonsa de Lívia já voltou.
03:25Não.
03:26Lívia ainda não voltou.
03:28E quando ela voltar, trate de deixar ela em paz.
03:31Lívia ficou muito perturbada com os outros acontecimentos e saiu para dar uma volta.
03:34Para tentar colocar as ideias no lugar.
03:36Ah, se ela tivesse o mínimo de juízo, de discernimento.
03:42Mais desmiolada como é, pode pensar a eternidade inteira que não vai dar em nada.
03:48Vai ficar dando voltas feito cachorro, correndo atrás do próprio rabo.
03:52Você está enganada, Augusta.
03:54Lívia saiu com o fim de propósito de resolver o que vai fazer da vida.
03:58E tenho certeza que ela vai chegar com a resposta.
04:00Afinal de contas, ela já não tinha decidido ir para o Rio de Janeiro?
04:04É, ela não sabe ao certo por causa do sumiço do dinheiro.
04:09Agora, ela sabe que não pode deixar a Leontina aqui.
04:12E também não tem como sustentá-la no Rio de Janeiro.
04:20Mais meia hora que você está aí.
04:23Eu não ouvi você descendo, tia.
04:26Olhando para a lua, feito uma donzela enfeitiçada.
04:29Nem donzela, nem enfeitiçada.
04:32Ah.
04:34Você estava pensando em quê?
04:38Na vida?
04:39Só isso?
04:40Pois devia estar pensando era no bom partido que você insiste em rejeitar.
04:45Eu não preciso me preocupar com bom partido, minha tia, porque eu não pretendo depender de marido.
04:50Não foi para isso que eu me preparei tanto.
04:53Eu prefiro assumir o comando da minha vida sem ficar submissa a ninguém.
04:57Se você está assim, se sentindo tão dona de sua vida, é porque já sabe o que vai fazer com ela.
05:07Afinal, você vai embora daqui ou não?
05:12Eu já tomei uma decisão, sim.
05:16E eu posso saber qual ela?
05:17Primeiro eu vou comunicar a ela a quem mais diz respeito.
05:22Tia Leontina.
05:25Se você me der licença.
05:32Bah.
05:33Bah.
05:35Fique de cochichos com a doida Ivana, as de Maria Leontina.
05:38Isso mesmo.
05:39Seja bem mazinha.
05:41Me deixe aqui, sem saber o que você resolveu.
05:44De tanta curiosidade, eu sou capaz de me rasgar.
05:48Não, não, não.
05:50Eu não posso me dar o luxo de rasgar mais nada.
05:53Mas que consumição, meu pai eterno.
05:55Para que se suspende?
05:57O que será que aquela criatura, sem discernimento, sem juízo, resolveu, afinal de contas?
06:04O que é que você acha?
06:06Vem.
06:06Vem, Oswaldo.
06:08Me dê sua opinião.
06:09Mas será possível?
06:14Já não bastou tanto que você me alugou os ouvidos durante o dia inteiro para falar de Lívia?
06:17E agora você vem me acordar, me arrancar de meu sono, para trocar novamente nesse assunto?
06:22Mas é que aquela destrabelhada aí está me deixando histérica.
06:25Eu estou prestes a ter um circuitinho competir.
06:28Imagine que agora a Lívia deu para falasso através de enigmas, Oswaldo.
06:32Só para me perturbar.
06:34Ela sabe que dependemos dela para tirar a barriga e tudo mais da miséria.
06:38Então ela tripudia.
06:41Mas se eu não conseguir arrancar nenhuma revelação dela, não faz mal.
06:46Eu arranco de Leontina.
06:47Augusta Eugênia, onde é que você vai?
06:49Eu vou assuntar com a minha irmãzinha o que o destino nesses dias difíceis que atende
06:55pelo nome de Lívia, reservou para mim.
06:58Eu vi quando a outra foi para baixo.
07:00Então a Leontina deve estar só no quarto.
07:02A Leontina nessa hora já está no décimo sono.
07:05Aqui é que eu faço, mulher.
07:07E vem aqui para a cama para dormir?
07:08Mas como é que eu posso dormir?
07:10Se eu nem sei se vai valer a pena acordar no dia seguinte.
07:13O consórcio de Alexandre Guerreiro com Lívia é a única janela que se abre para nós.
07:18que tantas portas já levamos na cara.
07:21Lívia já deixou claríssimo que não vai se casar.
07:23Mas o rapaz esteve aí.
07:26Conversaram por horas a fio.
07:28Se a Lívia costuma se comportar como uma destrambelhada,
07:35eu ainda tenho esperanças de que no fundo ela seja uma sonsa.
07:41E está querendo fazer o rapaz comer ainda mais nas mãos dela.
07:45É possível.
07:47E se ela ficar em Porto dos Milagres, está comprovada a minha teoria.
07:53Pois eu sei de alguém que vai gostar muito de ouvir as suas teorias.
07:56É aquele médico de malucos que nós conhecemos lá em Salvador.
08:00E se você não deitar para dormir agora mesmo,
08:03mesmo sendo tarde eu vou ligar para aquele médico.
08:05Sabe para quê?
08:05Para que ele venha aqui com a maior urgência.
08:08Para examinar os seus miolos.
08:10Tudo bem.
08:11Tudo bem.
08:13Eu vou me deitar um pouco.
08:15Estou muito cansada mesmo.
08:23Mas amanhã bem cedo...
08:26Leontina que me aguarde.
08:29Ela vai ter que me contar quais são os planos da outra.
08:33Agora se vai.
08:34Graças a Deus!
08:52Obrigada, meu pai eterno, por olhar outra vez por essa filha tão devotada.
08:57Tudo isso só porque Lívia resolveu ficar?
09:02Não sabia que você gostava tanto assim da companhia dela.
09:05Que companhia de Lívia?
09:06Desde quando aquela destrambelhada me faz companhia?
09:09Eu estou assim radiante, exultante, esfuziante,
09:12porque Lívia vai ficar em Porto dos Milagres
09:14depois de um longo coloquio íntimo com o Alexandre Guerreiro.
09:18Isto quer dizer que os dois se reataram?
09:21Alexandre pode ter esperanças.
09:24E eu também.
09:25E você pensa que Lívia resolveu ficar só por causa do Alexandre?
09:29Por sua causa que não pode ter sido, né Maria Leontina?
09:32Mas com certeza se eu conheço bem a sonsa de minha sobrinha,
09:36certamente ela vai me usar como justificativa
09:40para encobrir seu verdadeiro motivo.
09:42Alexandre Guerreiro.
09:44Isso só o tempo vai dizer.
09:47A vida segue o seu curso.
09:49O mundo volta a girar.
09:51A locomotiva entra outra vez nos trilhos.
09:54Lívia fica na cidade.
09:55Alexandre insiste mais um pouquinho com ela.
09:57Eu dou aquela ajudazinha.
09:59Aliás, todos nós daremos sim,
10:01porque você não adquire para sua queridinha
10:03seu triste destino, não é Maria Leontina?
10:07Solteirona encalhada.
10:08Lívia não corre o menor risco de ficar encalhada, Augusta.
10:13E então, Maria Leontina,
10:15quando tudo estiver juramentado, sacramentado,
10:19daremos uma grande, uma estrondosa,
10:21uma avassaladora festa de casamento.
10:24Tudo financiado pelo pai do noivo, é evidente.
10:27O atual prefeito e talvez futuro governador,
10:30Félix Guerreiro.
10:31Mas organizado por mim, é claro,
10:33aquela emergente morisca que não ouse se meter.
10:37Nada de economia, nada de miséria.
10:40Essa casa será restaurada para a ocasião.
10:42Estofados novos, cortinas,
10:44uma grande reforma em todos os banheiros,
10:46uma nova decoração.
10:48E a recepção, então?
10:51Rios de champanhe,
10:53cascatas de caviar,
10:55orquestra de jesas ali no jardim,
10:57como nos 50 anos de nosso pai.
10:59Isso e mais, muito mais, Maria Leontina.
11:02Vamos poder outra vez dar asas aos nossos requintes.
11:07E tudo isso para celebrar, não só a união da tradição com o dinheiro,
11:11do prestígio com o poder,
11:13mas para marcar a presença da família proença com o pé direito
11:17no novo milênio que começa.
11:18E mais que isto,
11:20a garantia de que a nossa dinastia
11:22ainda vai continuar por mais mil anos.
11:25É isso, Maria Leontina.
11:29É basicamente isso
11:32que a permanência de Lívia
11:34em Porto dos Milagres
11:36significa
11:38para nós.
11:44Ah, mas assim não é possível, criatura.
11:47Você já está fazendo planos
11:49de decorar esta casa
11:50por conta de um possível,
11:52talvez, suposto, hipotético
11:54e muito pouco provável
11:56o casamento de Lívia e Alexandre.
11:57Eu estou sempre pensando adiante, Oswaldo.
12:01Ah, eu não sei se forro
12:03esses estofados
12:04de ouro velho,
12:07damasco maduro
12:08ou vermelho, senhor.
12:10Eu, se fosse você,
12:11não contava com o ovo
12:12no fiofó da galinha,
12:14que é para não se decepcionar depois.
12:16Como você é para baixo, Oswaldo.
12:19Como você é pessimista.
12:21Choro, choro.
12:22Vai para lá.
12:25Que eu não quero
12:26essa carga negativa
12:27minando as minhas esperanças.
12:29Eu vou sair, sim.
12:31Mas é porque eu já estou
12:32até aqui dos seus delírios.
12:34Delírios, não.
12:36Aspirações.
12:37Desejos.
12:39E ninguém vai me impedir
12:40de realizá-los, hein, senhor Oswaldo.
12:42Delírios.
12:43Sua mãe hoje está de amargar.
12:51Rodolfo Augusto.
12:53Meu rebento.
12:54Minha perpetuação,
12:55minha continuação.
12:56Estava mesmo querendo
12:57conversar com você.
12:59O que foi?
13:00Está com saudade
13:01do seu filhote aqui?
13:02Nem a carne.
13:04Não, não faz isso.
13:05Não faz isso.
13:07Que isso?
13:08Menino, você vai me descabelar toda.
13:10É com uma mãe lindona
13:11como essa na minha casa.
13:12Para com isso.
13:13Para com isso, menino.
13:15Respeite sua mãe.
13:16Ah, está bem.
13:18Vai.
13:19Para então.
13:21O que você tem
13:22para me dizer?
13:23Nós precisamos
13:24conversar novamente
13:26sobre o seu futuro.
13:28As coisas estão
13:29se ajeitando, Rodolfo.
13:30Os bois de ventos
13:32voltaram a soprar
13:33nesta casa.
13:34Mas,
13:35você precisa fazer
13:37a sua parte.
13:37arranjando uma herdeira rica
13:40para me casar.
13:41Ó, o emprego público,
13:42a colocação,
13:42já te falei.
13:44A sorte virou.
13:45Aproveita a boa maré,
13:46meu filho,
13:47e trate de se arranjar.
13:49Vale relaxar, minha mãe.
13:51Se o negócio é ganhar dinheiro,
13:52já estou cuidando disso.
13:56A minha maneira.
13:58Alexandre Guerreiro,
13:59meu querido.
14:00Que prazer lhe ver.
14:01Para mim também
14:02sempre é um prazer.
14:03Como vai, Dona Augusto?
14:04Maravilhosa, maravilhosa.
14:05Ainda mais agora
14:06que estou recebendo
14:07a visita de uma pessoa
14:08tão querida
14:09e tão bem-vinda
14:10a esta casa.
14:11Mas sente-se, Alexandre.
14:12Eu vim aqui
14:13só falar com a Lívia.
14:14E eu queria falar
14:14sobre Lívia.
14:18Então, meu filho,
14:20eu acho que nós
14:20que somos
14:21praticamente
14:22da mesma família
14:23não pode mais haver
14:24papas na língua, não é?
14:26Me diga,
14:28este casamento agora
14:29sai ou não sai?
14:30Desculpa, mas é uma resposta
14:35que infelizmente eu não...
14:36Eu sei que eu fui
14:37um tantinho direta.
14:40Espero não ter lhe assustado,
14:41Alexandre.
14:43Mas é que eu faço
14:43um gosto
14:44tão imenso
14:46neste consórcio.
14:48Consórcio?
14:50Consórcio.
14:51Esponsais, núpcias,
14:52bondas,
14:53matrimônio,
14:53casamento.
14:54Depois dessa última conversa
14:57que vocês tiveram,
14:59a Lívia ficou
15:00tão diferente,
15:01sorridente,
15:02esperançosa,
15:04suspirando pelos cantos.
15:08Tanto que já decidiu
15:09ficar em Porto dos Milagres.
15:11Não é preciso ser
15:12nenhum portento
15:13pra adivinhar por quê.
15:16O que foi que você
15:17disse a ela,
15:17hein, seu danadinho?
15:19Que a Lívia vai ficar
15:20em Porto dos Milagres?
15:22Meu Deus!
15:23Ela não lhe contou.
15:25Ó,
15:26eu e essa minha boca
15:28de jacaré.
15:29Quando encontrar com a Lívia,
15:30por favor, Alexandre,
15:31finja que não sabe de nada.
15:33Ou ela jamais
15:34me perdoaria.
15:36Ela certamente
15:38estava planejando
15:39eu fazer uma surpresa
15:39pra você.
15:40Quer dizer que a Lívia
15:41não está em casa, então?
15:42Aqui em casa.
15:43É.
15:44Não, não, não está.
15:45Ela foi
15:46até a periferia
15:48distribuir uns cobertores
15:50que eu mesma arrecadei.
15:52Mas fique,
15:53fique me fazendo
15:54que eu for aí, Alexandre.
15:55Eu adoro os jogos.
15:57Ah, é o que eu tenho que...
15:58Eu volto mais tarde,
15:59daqui a pouco, tá bem?
16:00Tchau.
16:01Vá, vá, vá com Deus.
16:04Vá, minha tábua
16:06de salvação.
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