Este documentário retrata o tratamento desumano que os pacientes de Barbacena recebiam naquela época
Categoria
🎥
CurtaTranscrição
00:00Música
00:30A sociedade sempre teve dificuldade de lidar com as pessoas que tem transtornos mentais.
00:48Por muitos anos, a única solução era o isolamento em manicômios, lugares que se transformaram em verdadeiros campos de concentração.
00:56Este é um dos pavilhões do antigo Colônia, que foi o maior hospício do Brasil.
01:03Aqui, cerca de 60 mil pessoas perderam a vida em quase um século de desrespeitos aos direitos humanos.
01:11Mas há 30 anos, a discussão sobre a necessidade da reforma psiquiátrica ganhou força e mostrou que loucura mesmo é excluir aqueles que a sociedade taxou como loucos.
01:21No Caminhos da Reportagem, você vai ver as histórias do Colônia, como está o atendimento à saúde mental hoje e os rumos da reforma psiquiátrica.
01:35Era uma instituição que o objetivo dela não era curar as pessoas, porque de fato ninguém saía curado dali de dentro.
01:43É um depósito de indesejáveis, de pessoas que não têm vez e não têm voz.
01:55Ninguém nunca viu um ser humano degradado a tal condição.
02:07A quem interessava ter a colônia? A sociedade.
02:12Foi a sociedade brasileira, mineira, que fez, pagou e deixou isso aqui acontecer.
02:19E é uma história de muita vergonha, né?
02:21É uma herança muito pesada.
02:23Mas é a nossa história e ela precisa ser contada.
02:26Essa história começa em 1903, no município de Barbacena, em Minas Gerais, com a internação do primeiro paciente no antigo hospital Colônia.
02:47O número um é o Francisco Gonçalves Lamas, que é internado em Barbacena no dia 27 de dezembro de 1903, com 27 anos de idade.
02:59O diagnóstico dele é excitação maníaca.
03:05Aqui tem toda a historinha que acontece com ele na internação.
03:09E ele morre no dia 1º de abril de 1905, de gripe intestinal.
03:14Colônia é como ficou conhecido o primeiro hospital público de psiquiatria de Minas Gerais.
03:20A criação do hospício foi um prêmio de consolação para a cidade de Barbacena, após perder para Belo Horizonte a disputa pela capital do estado.
03:28Colônia é fruto do contexto histórico e social do qual ela resultou.
03:33Ela é uma entidade pública, é uma estrutura que foi criada por um governo, que tinha uma lógica de cuidados de pessoas com doenças mentais, que era própria daquela época.
03:50A jornalista Daniela Arbex fez uma vasta pesquisa sobre o Colônia.
03:55Escreveu uma série de reportagens e um livro sobre o assunto.
03:58Ela descobriu que logo nos primeiros anos, o hospício já havia começado a virar um depósito de seres humanos.
04:05Eu fui buscar no Arquivo Público Mineiro a documentação de superlotação, o primeiro registro de superlotação desde 1911 já havia registro de superlotação no hospital.
04:16Com o passar dos anos, a situação só piorou.
04:19Em 1960, num lugar projetado inicialmente para 200 pacientes, existiam 5 mil.
04:25A superlotação do Colônia foi um dos problemas denunciados pelo jornalista Irã Firmino, no final da década de 1970, em reportagens publicadas no jornal O Estado de Minas.
04:37Eu encontrei milhares de mulheres nuas lá, abandonadas, fazendo necessidade ao ar livre com todo mundo, igual bicho mesmo.
04:45Entrou lá, só sai quando morre, né? Aqueles muros enormes.
04:50Não tem como você fugir lá, né?
04:51Então, lá era um celeiro, então, de todo mundo que era doente mental, ou entre aspas, excluído a sociedade.
04:57Nos Porões da Loucura, o livro de Irã Firmino inspirou o cineasta Elvésio Raton, um dos poucos que conseguiu entrar no Colônia para fazer imagens do que acontecia por lá.
05:08O registro foi eternizado no filme Em Nome da Razão.
05:12Eu não sei se descrevesse alguma coisa mais chocante daquilo.
05:15Toda a condição dali, humana, era chocante.
05:19Era algo muito forte.
05:21Me lembro até hoje, assim, claramente dos cheiros que a gente sentia lá.
05:24Sabe, sabe?
05:25O cheiro de sofrimento, de suor, de, sabe?
05:30De fezes, de sujeira, né?
05:33Algo que ficou impregnado para mim.
05:35Então, assim, sempre dormiam em pátios ou dentro dos pavilhões com, às vezes, mais da capacidade normal que se teria para tantas pessoas.
05:49Em alguns momentos, esse próprio pavilhão onde nós estamos aqui, ele não tinha camas suficientes e as pessoas eram obrigadas a dormir em capim.
05:58Esse capim era recolhido durante o dia para secar o sol e, à noite, ele era colocado nos cantos da sala para que os pacientes pudessem dormir.
06:09A lembrança sempre que vinha para a gente, assim, era dos campos de concentração.
06:13Eu acho que eu nunca tinha visto imagens tão duras, tão chocantes como as que eu vi lá.
06:19Quer dizer, quando a gente vê documentários sobre a Alemanha nazista, que você vê imagens dos campos,
06:22as pessoas muito magras, sem roupas, amontoadas nos pátios, era o que havia em Barbacena.
06:28Por que o hospício é pior do que o campo de concentração?
06:32Porque ali não é a desumanidade que é importante, é a desumanização.
06:38Chega alguém, é despido dos seus bens, das suas roupas, é colocada nele uma roupa do hospício,
06:47é raspada a sua cabeça, todo o material que ele tiver, um relógio, seja o que for,
06:52desaparece.
06:55Rosana trabalhou no hospital como enfermeira por 26 anos.
07:00Tomavam-se banho às 7 horas da manhã, no inverno de Barbacena, em pleno julho,
07:04em torno de 5 graus, água gelada.
07:08E após o banho do paciente, o que acontecia?
07:11Não tinha toalha, eles colocavam a roupa que eles iam ficar o resto do dia novamente.
07:16Então a roupa molhava e eles iam para uma parte coberta,
07:19todo mundo agachado um do lado do outro para ver se esquentava.
07:25Toninho é um dos sobreviventes do Colônia.
07:27Ele foi para lá criança e passou quase 30 anos internado.
07:31Eles me punham na cela, a cela preta na cela, de castigo lá na cela, sabe?
07:38Depois mandaram jogar 10 latas d'água fria na cela e a gente ficava lá dentro da cela d'água.
07:48A gente ficava passando mal a peste naquela água lá.
07:51Por que eles te colocavam lá na cela?
07:54Ah, porque a gente fazia bagunça.
07:56Eram inúmeras as formas de punição para os internos desobedientes.
08:00No Museu da Loucura, que fica em um dos prédios onde funcionava o Colônia,
08:05era possível conhecer objetos usados para os castigos.
08:08O museu está fechado, em reforma, sem data para voltar a funcionar.
08:13O diretor de Cultura e Turismo de Barbacena mostra algumas peças que estão guardadas.
08:18Aqui é uma porta típica das chamadas dos quartos fortes, né?
08:25Onde os pacientes ficavam trancados e aqui tinha uma pequena abertura para se visualizar
08:30o que se fazia ou o que ocorria lá dentro.
08:33Mas basicamente você tinha isso aqui, que é uma grade.
08:37Essa aqui é a última grade retirada da instituição ainda nos anos 80.
08:42E ela mostra bem essa realidade dura do paciente, que era submetido às vezes a situações extremas, né?
08:51De ficar dias e dias preso numa solitária.
08:54O aparelho de eletroconvulsoterapia, conhecido como eletrochoque, deveria ser usado para tratar os pacientes.
09:02Mas, na realidade, o choque era utilizado como uma poderosa arma de punição,
09:07aplicado sem anestesia por qualquer pessoa com características semelhantes à tortura.
09:14E um vestígio que nós temos aqui, nessa peça específica, de que isso era usado de forma indiscriminada,
09:20era o fato de ter aqui, colado num aparelho, nós nem tiramos isso quando ele foi destinado para o museu, né?
09:29Colado num aparelho 11 passos para se aplicar um choque.
09:33Ou seja, nós imaginamos e temos relatos de pessoas que diziam que não havia, assim, um acompanhamento médico propriamente.
09:42Isso era feito, talvez, por um auxiliar de enfermagem ou qualquer pessoa que pudesse ajudar a aplicar o choque.
09:50A pessoa era simplesmente eletrocutada, sem maiores cuidados, né?
09:55Então, provavelmente, a gente vai ter casos de óbito, assim, seguidos, após uma aplicação dela.
10:07Rosalina, que já nem sabe quanto tempo ficou no Colônia, só saiu da internação em 2004.
10:13O eletrochoque é a lembrança mais triste que ela tem da rotina no hospício.
10:17O choque é assim na cabeça, aqui na cabeça, assim, põe um negócio na boca para não morder a língua.
10:27Aí, depois, tomei choque, eu fui para outro pavilhão.
10:37Aí, no outro pavilhão, eles deram outro choque também.
10:43Eles falam que é de tratamento.
10:45Sueli Rezende morreu no regime de internação.
10:48A filha Débora foi adotada.
10:50Ao buscar informações sobre a mãe biológica, ficou horrorizada com o que viu nos prontuários.
10:56No período de 78, acho que quando começaram com os choques,
11:01ela recebeu, chegou a receber, assim, 15 sessões de choque em um mês.
11:06Então, era coisa de assim, dia não.
11:10Era algo intolerável.
11:11E eu via que as crises dela, que ela se rebelava, ela não aceitava.
11:15Ela fazia de tudo para não levar o choque.
11:18Corria, ia para o banheiro, tentava derrubar a máquina, o aparelho, lutava com os funcionários.
11:24Às vezes, quando ia para o banheiro, passava fezes no corpo,
11:27que diziam que era para escorregar, porque eles não conseguiam ser pegos.
11:31Muitas vezes, um paciente que tinha acabado de tomar o eletrochoque naquela enfermaria gigantesca,
11:38ele já tinha acordado, ele ia ajudar a dar o eletrochoque no outro lá na frente.
11:44Mas muitas vezes, a energia elétrica era insuficiente para aguentar.
11:48Esses instrumentos cirúrgicos também fazem parte da história do Colônia.
11:56A lobotomia é uma cirurgia feita no lobo central do paciente,
12:02com a função de, de certa forma, tirar alguns estímulos da pessoa.
12:09Normalmente, era uma cirurgia feita em pacientes muito violentos.
12:14Havia casos de pacientes que conseguiam, inclusive, arrancar celas,
12:19as grades das celas, onde eles ficavam, dado o acesso de fúria que eles tinham, incontrolável.
12:26Então, esse expediente da lobotomia foi, algumas vezes, realizado no Hospital Colônia de Barbacena.
12:33O procedimento para conter a agressividade e os surtos, em vez de ajudar,
12:37fez muitos pacientes ficarem em estado vegetativo.
12:40A lobotomia tirava completamente as reações do paciente,
12:44a ponto dele, praticamente, virar um zumbi,
12:46uma pessoa incapaz de qualquer reação após a cirurgia.
12:55No Colônia, a falta de qualificação profissional também era um problema.
12:59Maria da Consolação foi trabalhar como auxiliar,
13:02sem nunca ter feito qualquer curso na área de saúde.
13:05No primeiro contato com os pacientes, tomou um susto.
13:09Minha chegada aqui foi assim, encontramos com a enfermeira Rosana,
13:16nós estávamos num grupo, onde ela levou a gente para o pavilhão Afonso Pena,
13:22simplesmente abriu o portão e deixou a gente dentro do pátio,
13:26mais ou menos com os 300 pacientes.
13:28Nós nos agarramos uma na outra, todos com medo, os pacientes todos em cima.
13:36Eu nunca tinha entrado no hospital psiquiátrico, então assim, fiquei apavorada.
13:40Jurema virou enfermeira na prática, sem uma única aula de enfermagem.
13:44Quando eu cheguei aqui, eu era leiga, eu não sabia nada.
13:53Veio uma funcionária com três, uma cubazinha com três seringas.
14:03Ela pegou uma paciente, fez a injeção e falou, toma essas duas, se vira.
14:09O esgoto corria céu aberto no Colônia e muitas vezes servia de alimento.
14:16Você vê as pessoas definhando, literalmente definhando.
14:22Isso já é um indício muito forte de que não havia alimentação.
14:25Fora que as pessoas que trabalharam na época contaram, e os próprios pacientes,
14:31contaram sobre isso, de que não havia alimento, de que eles passavam fome,
14:36de que era uma sopa rala.
14:38Eu cheguei a ver as pessoas comendo o que era julgado, igual faz com boi,
14:44como vai jogar aquelas comidas, uma espécie de coxa, e a turma vinha comer, igual bicho.
14:50No entanto, tinha verba para carne, tinha verba para comida, de qualidade.
14:56Só que isso nunca apareceu.
14:57E não eram apenas as pessoas com transtornos mentais que passavam por tudo isso.
15:02A quantidade de gente nos dando recado, fala com fulano, procura fulano, não sei o que,
15:06fala, por favor, eu estou aqui, eu não tinha que estar aqui.
15:11Essas falas repetiam.
15:15Então você percebia que muita gente ali não era para estar naquela, não era para estar na instituição.
15:22Quando você ia ver as histórias particulares, você ia percebendo isso.
15:26A gente encontrou histórias de pessoas que foram mandadas para o hospital sem ter doença mental.
15:32Que foram para lá para esconder uma gravidez, porque tinham perdido seus documentos, porque a família, porque o marido resolveu ficar com a amante.
15:43Foi um sujeito pobre que foi pego fumando maconha, outro que estava sem documento, não há blitzes, outro que estava alcoolizado.
15:50Quer dizer, na verdade, era como se fosse um despejo social.
15:54Essas pessoas todas excluídas, juntando realmente quem tinha algum quadro de esquizofrenia, eles eram juntadas aqui.
16:00E como essas pessoas de várias regiões do país chegavam ao maior hospício do Brasil?
16:06Por esses trilhos passavam os chamados trens de doido, termo criado pelo escritor Guimarães Rosa,
16:13para as locomotivas que atravessavam o interior do país e chegavam aqui em Barbacena, lotadas de passageiros agitados.
16:20A maioria não sabia em que cidade tinha desembarcado, nem porque havia enfrentado uma longa viagem sem passagem de volta.
16:27A estação ficava logo aqui embaixo, aqui à frente.
16:32Era fácil a entrada para o hospital.
16:35Então, eles embarcavam ali e seguiam por esse portal que já estava dentro do espaço aqui do hospital.
16:43Barbacena, desde no final do trem de doidos, ficou conhecida como Cidade dos Loucos,
16:49mas também ganhou a fama de Cidade das Rosas.
16:52O município é cercado por grandes plantações de roseiras.
16:56A região se tornou uma das maiores produtoras de flores do país.
17:01Tanta beleza e perfume não alcançavam os portões do Colônia, nem na hora da morte.
17:07Em vez de coroas de flores e caixões, muitos falecidos tinham os restos mortais vendidos,
17:12como indigentes, para estudos nas faculdades de medicina, entre elas, a Universidade Federal de Minas Gerais.
17:19A história da venda de cadáveres está documentada aqui nos livros de registro.
17:24Neste aqui, por exemplo, estão os nomes dos falecidos que tiveram os corpos vendidos
17:29para a Faculdade de Medicina de Valença, no Rio de Janeiro.
17:32Em setembro de 1969, foram vendidos 22 corpos, cada um por 50 cruzeiros novos.
17:40Total, 1.100 cruzeiros novos.
17:43Isso em valores atualizados seria, em média, 200 reais por cadáver.
17:47Aproximadamente 4.400 reais no total.
17:51A gente chegou a 1.853 corpos vendidos para 17 faculdades de medicina do Brasil entre 1969 e 1981.
18:00A gente encontrou já registros de vendas em 82 e a gente não está considerando aqui as vendas
18:07que foram feitas de 61 a 69, porque já havia registros, já haviam denúncias de venda.
18:15Pior do que você não ter identidade, não ter fala, não ter o que comer, foi quando começou a venda de cadáveres.
18:25Isso aí foi tão chocante, tão absurdo, tão horror, que foi talvez o momento mais pungente, mais desagradável, mais triste que podia acontecer.
18:39Eu tive a ocasião de ler uma carta de um diretor de uma escola, pedindo para dar um jeito de aumentar o fornecimento,
18:50porque estavam precisando de cadáveres e não tinham.
18:53Os corpos não comercializados tinham um destino certo.
18:57Este era o cemitério dos pacientes do Colônia.
19:00Aqui, muitos foram enterrados juntos em uma única cova, sem direito a caixão e longe do cemitério das pessoas ditas como normais.
19:09O local foi desativado há mais de 20 anos.
19:12Hoje está abandonado, com túmulos violados.
19:15Em 2007, a Prefeitura de Barbacena lançou um concurso para criar no local abandonado o Memorial das Rosas,
19:23unindo assim os dois símbolos da cidade, loucura e flores.
19:27O projeto vencedor propõe a revitalização do espaço e a criação de uma passarela suspensa no terreno para preservar o passado.
19:35A ideia ainda não saiu do papel.
19:39Veja no próximo bloco como foi o processo de humanização da psiquiatria no antigo Colônia em Barbacena.
19:45Fim dos anos 1970.
20:02O regime militar começa a perder força.
20:05Com o fim do AI-5 e a volta dos exilados políticos,
20:09as bandeiras em prol dos direitos humanos flanam com mais intensidade.
20:12E um grupo de jovens psiquiatras resolve se mobilizar para questionar o modelo de tratamento na saúde mental.
20:20Jairo e alguns colegas encabeçaram o projeto para a realização do terceiro congresso mineiro de psiquiatria.
20:26Começamos já nesse momento a desenvolver a ideia de fazer o congresso no ano seguinte,
20:33já com a data pré-definida, que seria novembro de 79.
20:38Mas o que ocorre?
20:39Em plena preparação da organização desse congresso,
20:44vem ao Brasil Basaglia passar três semanas no Brasil.
20:48E aqui é feito um convite para que ele voltasse em novembro naquele congresso que nós já estávamos organizando.
20:56Franco Basaglia foi o médico responsável pela reforma psiquiátrica italiana
21:00e inspirou o movimento no Brasil.
21:03O psiquiatra Antônio Soares Simone foi quem levou Basaglia ao Colônia em Barbacena.
21:07Quando ele chegou lá no Colônia, quais foram as impressões?
21:11O que ele falou?
21:12O que chamou a atenção naquele dia?
21:15Lacrimejou, chorou, estancou em silêncio absoluto.
21:26Basaglia convocou a imprensa para descrever o que viu no Colônia.
21:30O Holocausto é a representação máxima da barbárie humana.
21:36Mas aqui é pior do que o Holocausto.
21:48Aqui é o papel da imprensa, e quando se fala em imprensa naquele momento, é Irã Firmino.
21:54Irã, com certeza, durante uns 80 dias, ou seja, talvez de julho até o congresso, mais dias até,
22:08ele divulga todo dia matérias sobre, ele não deixa a coisa esfriar.
22:14Nós mantivemos a chama acesa, mostrando os vários movimentos da sociedade, no meio político, reclamando da situação e tal.
22:21E quando teve o congresso, aí estava, foi estopinho, né?
22:24O Basaglia veio e detonou mesmo.
22:27Foi um congresso histórico, lotado de gente, de pacientes.
22:32Nunca um paciente tinha dado uma entrevista.
22:34O psiquiatra Ronaldo Simões Coelho apresentou no congresso um documento de denúncia contra o Colônia.
22:39Seria de desejar que, a 16 de agosto, morresse de velhice o Hospital Colônia de Barbacena.
22:48Octogenário, nascido por lei de 16 de agosto de 1900, morreria sem glórias.
22:55E, sob seu túmulo, se poderia escrever para a fazenda Dante.
23:00Quem aqui entrou, perdeu toda a esperança.
23:04A sociedade também se mobilizou.
23:07Nós começamos a levar essa questão dos hospitais, desse modelo manicomial, para levar para essa discussão, para a cidade.
23:18Para mostrar que esse modelo era o modelo que a gente tinha de romper.
23:22Porque o slogan da luta antimanicomial é por uma sociedade sem manicômios.
23:27O grande desafio que nós tínhamos em Barbacena era mudar a cultura.
23:32Era a cultura do normal.
23:34Porque quando você entrava numa instituição desta, você impactava.
23:39Mas logo, logo você ia acostumando, você ia achando que aquilo era normal.
23:43Era uma cultura interna e uma cultura externa.
23:47O externo era aquela cultura que tudo que incomodava a sociedade vinha para o hospital.
23:51A gente começou a dizer, opa, tem um diferencial aí.
23:55Doente é doente, problema social é problema social.
23:57Em 1986, Jairo assumiu a direção do hospital e começou a colocar em prática o plano de humanização.
24:05Proibiu a transferência indiscriminada de pacientes para a instituição
24:09e encontrou uma forma de acabar com o comércio de cadáveres para as universidades.
24:13Nós começamos a criar vínculos dos pacientes com os nossos funcionários.
24:18Os nossos pacientes não tinham velório, passaram a ter velório.
24:22E nós criamos todo o mecanismo de que um processo de um sepultamento exigia numa sociedade.
24:30No alto da serra, na fria e bucólica Barbacena, aqui estão eles a passear no quintal dos prédios onde funcionava o hospício.
24:47Alguns pavilhões do antigo colônia se transformaram no centro hospitalar psiquiátrico de Barbacena.
24:53Outros no hospital regional, que oferece atendimento ambulatorial e de emergência pelo SUS.
24:58Os pátios onde os pacientes passavam o dia vagar, hoje estão vazios.
25:04As marcas do tempo também estão no rosto dos pacientes que ficaram idosos e nunca saíram daqui.
25:10Dona Aurora é uma das mais antigas. Não se lembra quantos anos tem.
25:14Foi internada no Colônia em 1957.
25:18É bom aqui.
25:19O que você faz aqui?
25:20Eu sou mesmo.
25:21Como Dona Aurora, outros 171 pacientes estão no regime de internação de longa permanência.
25:28Hoje, cada um desenvolve uma atividade.
25:31Todos os dias, Dona Eunice vem ao centro de atendimento ao paciente asilar para fazer peças de tapeçaria.
25:37Aos 56 anos, ela se orgulha em dizer que acorda antes das 6 da manhã para trabalhar.
25:43O resultado dos trabalhos mostra que pessoas com transtornos mentais não são incapazes,
26:05mesmo quando existem ainda mais obstáculos a serem enfrentados.
26:08A parecida é cega, surda e muda.
26:12Internada desde 1967, provavelmente sem distúrbios mentais, ela faz o maior sucesso com sua habilidade em costurar colchas de retalhos.
26:23Kenney, como é que vocês escolhem quais atividades cada um vai desenvolver?
26:26Vai partir do interesse do paciente.
26:30Então, ele vai falar o que ele gosta de fazer.
26:33Nós mostramos algumas possibilidades que ele pode fazer, pode estar desempenhando e a partir disso a gente indica a atividade.
26:40Logo que entrou no hospital na década de 1980, a enfermeira Rosana começou a incentivar que os pacientes não ficassem parados.
26:50Nós fizemos uma horta muito grande e a gente plantava, plantava alface e de tarde a gente fazia chá e tinha uma sanfona onde a gente cantava junto com os pacientes.
27:01E os pacientes adoravam, porque diminuiu a medicação da noite, o paciente voltava para o pavilhão, tomava banho quentinho, jantava e dormia a noite inteira.
27:14Satisfeito, porque ele tinha atividade.
27:17Roseli, que trabalha como enfermeira no hospital há 23 anos, acompanhou o processo de humanização do tratamento.
27:23Dentro do hospital, nós começamos realmente a pensar, construir uma nova prática, tirar desse modelo, que era um modelo coletivizado, as ações dos profissionais coletivizadas, o banho coletivo, não tinha uma individualização, uma preocupação com o gosto de cada um, com o potencial de cada um.
27:48Hoje quem vive nos pavilhões tem cama e armário. A maioria divide espaço com outros pacientes.
27:55Mas ao fim de um longo corredor, encontramos o quarto rosa da Lourença. Tudo aqui é do jeito que ela sonhou.
28:02Lourença apresenta um quadro estável de esquizofrenia e hoje vive melhor.
28:06Eu gosto muito de rosa.
28:08Quem também tem o próprio quarto é o Paulo.
28:11Uma vez flamengo, sempre flamengo.
28:15O flamenguista roxo se orgulha da decoração do quarto.
28:19Além de reunir objetos do time do coração, ele também gosta de assistir a programas de esporte na TV.
28:25Na parede, a foto dos primeiros anos no Colônia.
28:28Paulo chegou aqui em 1956, com 27 anos.
28:33Ele se faz muito entender pelo olhar, ele tem um olhar muito expressivo, ele é muito alegre, ele é muito emotivo.
28:41Sabe, assim, quando você fala que vai sair, ele fica emocionado.
28:47O mês passado a gente fez o aniversário dele, ele fica emocionado também, chora com dificuldade.
28:53Em 1989, o hospital começou o projeto dos módulos residenciais.
29:05Com o formato de uma casa, o lugar recebe os pacientes que vão se preparar para finalmente sair do hospital.
29:12Nos cinco módulos, vivem hoje pouco mais de 100 pessoas.
29:16Os que estão aqui nos módulos são os pacientes que têm mais, assim, facilidade da gente trabalhar com eles
29:23para uma possibilidade de ir para uma residência terapêutica.
29:29Essa preparação é saídas na rua para acostumar com a população, porque eles perderam esse vínculo com a comunidade.
29:38Então a gente procura resgastar essa parte deles social.
29:42Donizete sai do hospital com um acompanhamento para comprar os CDs e DVDs preferidos.
29:49Também gosta de dar umas voltinhas pela rua e ajudar o padre.
29:53Ele veio de Botelhos, Minas Gerais, em 1981.
29:57Foi trazido pela polícia após tirar a roupa em cima de um muro e começar a mexer com uma moça.
30:02O maior sonho é que alguém de Botelhos venha buscá-lo.
30:06As assistentes sociais do hospital não conseguiram localizar a família dele.
30:10Muitas dessas pessoas já têm condições de morar em residências terapêuticas.
30:18Mas, afinal, o que falta para que possam sair da internação no hospital?
30:23O município de Barbacena e os outros municípios são responsáveis pelas residências terapêuticas.
30:30Então, para as pessoas saírem daqui, a gente precisa que o município tenha condições de recebê-las.
30:38Ou as famílias.
30:39Recentemente, um dos módulos residenciais foi cercado por muros.
30:43Colocaram um murinho de um metro e meio, dois metros de cimento e, acima, grade, tela, tela de arame.
30:51O que é o início disso?
30:52É o início do muro, né?
30:53Está voltando o muro de novo.
30:55Então, ele sendo cercado de cimento e coisa.
30:58Está reproduzindo o hospício de novo.
31:00Apesar da gente ter um muro, ele está dentro de uma área verde que tem mais possibilidades.
31:06E o muro não impede que os pacientes, os moradores do módulo residencial 4, transitem pelas áreas ao redor do módulo residencial.
31:17Um lar em Belo Horizonte abriga pessoas e histórias da época dos manicômios.
31:23Aqui moram os meninos de Oliveira.
31:25Eles foram internados quando eram crianças em um hospital psiquiátrico infantil no município de Oliveira, Minas Gerais.
31:32A pouca idade não os livrou dos maus tratos.
31:35Eu cheguei e tinha uma criança deitada no chão, como se estivesse crucificada, com os braços abertos, as mãos amarradas e fincadas no chão e as pernas também.
31:51Eu lhe perguntei por que ele estava assim.
31:54Uma criança, com o solão menor.
31:57E a resposta que me deram foi que ele era muito perigoso, porque ele arrancava os olhos das outras crianças.
32:04Eu lhe perguntei quantos olhos ele já arrancou.
32:08Nenhum, porque ele está sempre amarrado.
32:10Em 1976, o hospital infantil foi fechado pelas péssimas condições do prédio.
32:1633 crianças foram encaminhadas para o colônia, onde se juntaram ao martírio dos adultos.
32:22Em 1998, quatro sobreviventes de Oliveira e outros três ex-internos de Barbacena vieram morar no lar abrigado.
32:31Aí eles chegaram, né? Não tinha nem roupa, as roupas nem dava para usar, nem nada.
32:37Todos magrinhos, todos sujos, não sabe? Uns bichinhos mesmo, né?
32:42Só não sabia comer, nada.
32:46Trazer os meninos de Barbacena para cá foi a realização do sonho da irmã Mercês.
32:52Oferecer dignidade, carinho e o lar que eles nunca tiveram.
32:56Aí eu falei que a postura era diferente, né? Que eu não queria mais nada que tinha sido feito lá dentro sem censurar ninguém, né?
33:04Mas para aqueles, eu ser chamados pelo nome e eu ser muito bem tratados.
33:10Sílvio foi criado na ala feminina do colônia.
33:13Ao ser fotografado de vestido e coberto de moscas quando tinha 11 anos, chegaram a pensar que ele estivesse morto.
33:20Hoje, aos 47 anos, prefere ficar deitado, posição em que passou a maior parte da vida.
33:25Sílvio não fala, assim como todos os outros moradores do lar abrigado.
33:30Mas ele se faz entender pelo olhar, pelos gestos e pelos sons.
33:35O Tonho se desenvolveu muito depois que veio morar no lar abrigado.
33:39Aprendeu a tomar banho, a se arrumar sozinho e também fazer trabalhos manuais.
33:44Olha aí um quadro dele.
33:45E eu fiquei sabendo também que você gosta de passear, é verdade?
33:51Fiquei sabendo que você vai ao cinema, ao shopping, a lanchonete, lancha.
33:57Adora dar uma voltinha pela cidade.
34:00E o Tonho ficou bonito porque o Tonho tem uma vida social melhor que a gente, né?
34:04Ele vai para tudo quanto é lugar.
34:06Você que a gente não faz, ele faz, né?
34:07Cada um aqui alcançou pequenas conquistas que se tornaram passos grandiosos, graças ao esforço da Irmã Mercê.
34:15Cada um tem um projeto, né?
34:17Escrito, tá?
34:18Escrito mesmo.
34:19Então é só ver o que precisa estimular.
34:21Essa estimulação, ela é constante.
34:23Porque se eu não estimular, eles vão voltar atrás.
34:25Recentemente, eles conseguiram o direito a ter uma carteira de identidade.
34:29Agora são cidadãos não mais ignorados pelo Estado e pela sociedade.
34:33E a Irmã Mercês passou a ser também no papel a responsável por zelar pela vida de cada um.
34:40E achei bonito porque são pessoas que praticamente não tem ninguém, né?
34:45Então pra mim foi uma alegria mesmo.
34:47Eu até falei, nossa gente, eu não imaginava que o meu nome também ia sair na certidão deles, né?
34:53Então tem um peso grande pra mim e eu vou ficar seguindo esses meninos pra sempre, né?
35:03Uma das meninas de Oliveira fez história no Colônia.
35:07Sueli Rezende era famosa por responder com violência a toda a crueldade que sofria no hospício.
35:13Ela não respeitava a gente.
35:15Ela chegava mandando com palavras, já com palavrões mesmo, mandando mesmo.
35:22Pra me atender, ela entra em depressão.
35:24Mas depois eu aprendi a amar a Sueli, aprendi a ter o respeito da Sueli.
35:27Além da agressividade, Sueli também usava os versos para mostrar toda a sua indignação.
35:33E mais atrás vem o macarrão.
35:37Parece cola de colar balão.
35:41E mais atrás vem a sobremesa.
35:45Banana podre em cima da mesa.
35:48A letra, gravada na mente e no coração da Débora,
35:51é a maior herança que ela conseguiu resgatar da mãe que não conheceu.
35:54As mulheres que engravidavam no Colônia não podiam ficar com os filhos.
35:59As crianças eram adotadas ou iam para orfanatos.
36:03Débora foi adotada por uma funcionária do hospital, a Jurema.
36:06Eu com pena dela, pra ela não ir pra Febem,
36:10eu falei, vou levar, eu vou criar essa menina.
36:13E criei.
36:14Já adulta, Débora descobriu que era adotada e foi atrás da própria história.
36:19Por meio de documentos e relatos de funcionários do antigo Colônia,
36:22ficou sabendo que sua mãe Sueli havia falecido um ano antes
36:26e desvendou histórias no hospital que a emocionaram.
36:30Sempre que tinha festinha lá,
36:32aí os funcionários levavam os filhos, familiares.
36:36Então ela via a criança, ela corria pra abraçar.
36:38E num desses abraços, ela me abraçou.
36:42Sem saber, eu tinha sete anos.
36:44Aí uma funcionária que me contou.
36:46E ela ainda falou que eu devia ter a idade da menina dela.
36:50Agora Débora quer descobrir o paradeiro da irmã,
36:54a segunda filha que Sueli teve no hospital.
36:57Ela foi entregue pra adoção.
37:00Eu só sei que ela nasceu no dia 15 de junho de 86,
37:04é dois anos mais nova.
37:06E o nome que a minha mãe escolheu pra ela foi Luzia Rezende.
37:10Mas devem ter trocado o nome.
37:12Débora guarda com muito carinho um terço que foi da mãe
37:15e a certeza de que foi amada por ela.
37:18As únicas lembranças que ela tinha era a cor de pele.
37:21Ela tinha uma filha morena e uma filha branquinha.
37:24E as datas de nascimento.
37:26Sempre que estava próxima, ela falava
37:27em tal dia minha filha mais velha vai fazer tantos anos.
37:32Isso eu li nos prontuários, ela contando.
37:34Quando eu fiz oito anos, que ela teve uma crise,
37:36que ela queria saber como era o rostinho da filha dela.
37:39Gostei muito de saber que ela foi uma personalidade forte lá dentro,
37:43que ela se defendeu e que ela tinha orgulho também
37:46de ter tido as duas filhas.
37:56Sair de Belo Horizonte para visitar a mãe em Barbacena
37:59pelo menos uma vez por mês
38:01é uma felicidade que João Bosco conquistou há pouco tempo.
38:05Os dois também foram vítimas da política de afastamento
38:08entre mães e filhos dentro do colônia.
38:10Geralda era empregada doméstica e foi estuprada pelo patrão.
38:15Ficou grávida e, mesmo sem ter nenhum transtorno mental,
38:18foi enviada para o hospício.
38:20Eu levei o maior choque, porque eu não estava acostumada com aquilo,
38:23não tinha visto aquilo.
38:24Saí de onde eu saí para vir para uma prisão daquela,
38:29ficar no meio daquela bagunça,
38:31aquela bagunça, né?
38:34Aqueles paviões, aquelas coisas,
38:35aquelas pessoas de gente doente, né?
38:37Depois que João Bosco nasceu, ela conseguiu alta do hospital.
38:41Foi atrás de emprego e deixou o filho com religiosas que trabalhavam no colônia.
38:46Um dia, quando voltou para visitá-lo, a criança não estava mais lá.
38:50Nunca mais eu tinha notícia dele.
38:52Nunca mais eu tinha notícia.
38:54João Bosco foi para um orfanato e, depois, para a Febem.
38:58Quando eu era adolescente, eu não tocava no assunto
39:04e não permitia que ninguém tocasse no assunto.
39:06Tipo, perguntar sobre a minha mãe.
39:11Isso era um tabu.
39:13João Bosco passou no concurso do Corpo de Bombeiros.
39:16Os colegas da corporação foram até Barbacena
39:19para descobrir quem era a mãe dele.
39:21E a encontraram em 2011.
39:23O reencontro foi uma surpresa na comemoração dos seus 45 anos.
39:31Para mim foi a melhor coisa, né?
39:35O que eu esperava de acontecer na vida, aconteceu.
39:39Dei ele aparecer, né?
39:41E ter o carinho que ele tem comigo.
39:43Por mais que as contingências da vida
39:48levem cada um para um lado,
39:53mas existe essa coisa,
39:58esse laço invisível,
39:59esse laço laçado por Deus
40:03entre a mãe e o filho.
40:07Isso ninguém rompe.
40:08Então, quando você reencontra,
40:15você só está voltando à origem.
40:22No próximo bloco, você vai ver como é a vida das pessoas
40:26que deixaram os hospitais psiquiátricos
40:28e hoje vivem em residências terapêuticas.
40:30Música
40:38Voltar para casa
40:49após longos anos de internação
40:51em um hospital psiquiátrico
40:52é um grande desafio.
40:54José Horácio tenta a reaproximação com a família
40:57desde 2013,
40:59quando deixou o hospital em Barbacena.
41:01Ele havia chegado
41:02ao Colônia em 1977.
41:04Ele tinha 14 anos.
41:06Caia no meio da rua.
41:08Não dava sossego também.
41:10Já viram a hora dele matar a gente dentro de casa,
41:12foi obrigado a mandar.
41:13Depois de 38 anos de internação,
41:16funcionárias do hospital encontraram
41:18a família de José Horácio
41:19em Araçuaí, Minas Gerais.
41:21Ele começou a demonstrar esse interesse
41:23de estar voltando para Araçuaí
41:25para morar com a mãe.
41:27E nós fizemos contato com o CAPS municipal
41:30e aí nós fizemos essa viagem na realidade
41:32para a gente poder conhecer lá a rede,
41:35de municípios, né, se ele teria condições
41:37de estar voltando.
41:38Ele chegou que ele tinha o diagnóstico
41:40F71.1, que era um retardo mental leve,
41:45o quadro psíquico dele estava estável,
41:48ele morou com a família
41:50aproximadamente uns dois meses,
41:53mas ele teve conflito familiar
41:55e após uma crise com a mãe,
42:00foi, na verdade, uma briga, né,
42:03ele desestabilizou um pouco,
42:06ele chegou a agredir a mãe.
42:09Tem razão dele ter me estranhado,
42:11não foi criado mais eu,
42:12foi criado por mais vezes lá.
42:14A mãe não conseguiu ficar com o filho
42:16e pediu ajuda à justiça.
42:18José Horácio foi então viver
42:19numa residência terapêutica.
42:21De vez em quando, visita a mãe.
42:23Os dois não fazem planos
42:25de tentar morar juntos novamente.
42:27Ele não fala em outra coisa
42:29a não ser retornar para o hospital
42:31em Barbacena.
42:32A nossa saudade bota pra lá mesmo,
42:34que aí fica aqui não.
42:36Aqui não tem lugar a fazer nada, viu?
42:39Quer ficar lá mesmo.
42:41É um trabalho de formiguinha,
42:44restabelecer todos os vínculos
42:46familiares novamente.
42:48Um dos principais símbolos
42:49da humanização na psiquiatria
42:51é justamente uma casa,
42:53como a que o José Horácio mora atualmente.
42:55O direito básico do homem à moradia
42:57foi devolvido a milhares de brasileiros
42:59com transtornos psiquiátricos,
43:01por meio do projeto
43:02das residências terapêuticas.
43:04Em 1989,
43:06foi apresentado aqui no Congresso Nacional
43:08um projeto de lei para regulamentar
43:10os direitos das pessoas
43:12com transtorno mental.
43:13A proposta determina
43:15a extinção progressiva
43:16dos manicômios no país.
43:17Em 2001,
43:19depois de 12 anos de tramitação,
43:21a lei 10.216 foi sancionada.
43:25É uma lei que pode
43:26ter destinação sanitária,
43:30mas ela não é uma lei
43:31de características médicas.
43:35Ela é um procedimento
43:37que a sociedade brasileira
43:40quer dos seus médicos,
43:42que atendam em liberdade,
43:45que não isolem,
43:48que escutem a história da loucura,
43:52por que a pessoa chegou
43:53àquele ponto
43:54e que encontrem um caminho
43:56se não for possível de cura,
43:58porque nem todo sintoma
44:00e nem toda doença
44:01às vezes permite a cura,
44:04mas que pelo menos
44:04seja um tratamento assistido.
44:07De acordo com dados
44:08do Ministério da Saúde,
44:10a lei está sendo cumprida.
44:11Atualmente,
44:12existem cerca de 25 mil
44:14leitos psiquiátricos do SUS
44:15em 166 hospitais psiquiátricos
44:18no país.
44:19Em 2006,
44:20havia quase 41 mil leitos
44:22em 228 hospitais.
44:24Mas há quem discorde
44:25da extinção dos leitos
44:27em hospitais psiquiátricos.
44:28Quantas pessoas,
44:29normalmente,
44:30eu no meu consultório particular,
44:32eu interno por ano?
44:34Uma, duas,
44:35que a gente tem condições
44:36de manter em casa
44:37no seio da família.
44:38Por causa disso,
44:39eu vou dizer que não precisa
44:40de hospital psiquiátrico.
44:41É claro que precisa.
44:43A gente não acaba
44:44com a doença por decreto.
44:46Há os quadros mais graves.
44:48Para substituir
44:48os leitos psiquiátricos,
44:50foram criados os CAPES,
44:52Centro de Atenção Psicossocial,
44:54que oferecem assistência
44:55médica e terapêutica
44:56a pacientes e familiares.
44:58As internações ocorrem
45:00apenas em casos de crise,
45:01por poucos dias.
45:03O tratamento nos CAPES
45:04está integrado ao cuidado
45:06nas residências terapêuticas.
45:09Olá, bom dia!
45:14Olá, boa noite!
45:15Muito prazer!
45:16O Eliezer é um dos mais
45:18novos moradores desta casa.
45:20Ele vive há menos de um ano
45:21com outros sete ex-internos
45:23de manicômios.
45:24Sua marca registrada
45:25é o sorriso no rosto
45:27o tempo todo.
45:28O Antônio,
45:29apelidado de cabo no Colônia,
45:31fala pouco e baixinho.
45:33Ele é o chefe de cozinha da casa.
45:36Já o Geraldo é falante.
45:38Depois de passar 33 anos internado,
45:41agora ele se sente livre
45:43para fazer o que gosta.
45:45Tem cachorro, tem as galinhas,
45:47cuida minhas flores.
45:48Tinha uma hortinha lá embaixo
45:50e eu adoro.
45:51Adoro.
45:51Todo dia de manhã eu moro essa.
45:53O Toninho é o romântico da casa.
45:56Ele foi levado ao Colônia
45:57ainda criança.
45:58E foi na infância,
45:59dentro do hospício,
46:00que começou o namoro
46:01que dura até hoje.
46:02Todos os domingos
46:03eu ia ver almoçar aqui comigo.
46:05É?
46:06Aí quando as três águas
46:07eu ia embora de morto.
46:08Eu era desde pequena assim
46:10que nós namoramos.
46:11Desde quinhentos
46:12que se namoram antigos.
46:15Eu gosto dela demais.
46:16Aqui em Barbacena,
46:22183 pessoas moram
46:23em 32 residências terapêuticas.
46:26Em todo o país,
46:27são 620 casas como esta,
46:30onde os antigos internos
46:32dos hospitais psiquiátricos
46:33aprendem a viver com dignidade.
46:36Nas residências,
46:37os moradores são assistidos
46:38por cuidadores,
46:39psicólogos
46:40e assistentes sociais.
46:41Eu saio com eles à noite,
46:43a gente vai para a pizzaria,
46:45eles comem pizza,
46:47eles não sabiam
46:47o sabor de uma pizza.
46:48Eles vão ao cinema,
46:51hoje em dia eles vão,
46:53eles saem na rua sozinhos,
46:54sem a minha ajuda, né?
46:58É como se fosse um filho nosso
47:01que a gente está colocando na rua,
47:04a gente vai,
47:05às vezes a gente olha, olha, olha
47:06e de repente a gente vai começando
47:07a descensar sozinho,
47:08até sair sozinho,
47:10até reabilitar.
47:11Quando aquilo que a gente acha
47:12que é muito, assim,
47:14que é tão básico, né?
47:15Como ir à padaria,
47:17comprar um pão,
47:18sentir o cheiro de um pão,
47:19escolher a verdura, né?
47:21Ou o legume,
47:21ou a salada que ele vai, né?
47:23Que ele quer para o almoço, né?
47:26A pessoa, numa instituição total,
47:27ela vai perder tudo isso, né?
47:29Ela não escolhe
47:30que horas que vai comer
47:31ou que vai comer.
47:32A grande dificuldade
47:33que nós já enfrentamos
47:36é a questão do preconceito.
47:38Nós já tivemos situações
47:40de vizinhos
47:41que se incomodavam
47:43com a presença
47:43dessas pessoas,
47:44porque essas pessoas,
47:46elas vinham de um hospital psiquiátrico,
47:48porque essas pessoas
47:49poderiam ser agressivas,
47:51porque essas pessoas
47:52faziam uso de medicação.
47:54Isso já aconteceu
47:55no início,
47:56inclusive,
47:57nós tivemos dificuldade,
47:58inclusive,
47:58de imobiliária,
48:00que não queria alugar,
48:01porque sabia que era
48:01residência terapêutica.
48:02E é um processo
48:03do dia a dia mesmo,
48:05buscar autonomia, né?
48:08Fazer com que esses sujeitos
48:09passem a desejar,
48:11porque se perde isso
48:12dentro do hospital.
48:14No hospital,
48:15há uma hora,
48:16o Geraldinho fala muito bem,
48:18diz,
48:18há uma hora para tudo.
48:20Então,
48:20aprender a acender a luz,
48:22aprender a dizer não,
48:24ou aprender a falar
48:25o que eu quero,
48:26escolher.
48:26E quando, né,
48:28vamos sair para comprar roupa,
48:29vamos escolher,
48:30era a gente que escolhia, né?
48:33E hoje, então,
48:34já poder dizer do que quer,
48:35do que não quer.
48:37E aí é muito bacana,
48:38porque hoje a maioria, né,
48:41tem o benefício
48:43de prestação continuada,
48:44que é um salário mínimo,
48:46e tem a bolsa
48:47do programa de volta
48:48para casa.
48:49Então, a gente começa
48:50a trabalhar essas questões
48:52do gastar o dinheiro,
48:53do economizar.
48:54E é a autonomia
48:57uma das principais conquistas
48:58deste casal.
49:00Adelino,
49:00que sofre de epilepsia,
49:02e Nilta,
49:03que tem catatonia,
49:04se conheceram no Colônia.
49:06Eles se casaram,
49:07ganharam uma festa
49:08e conseguiram uma residência
49:10só para eles.
49:11São muito cuidadosos
49:13com as finanças,
49:14sabem economizar
49:15para adquirir tudo
49:16o que precisam.
49:17E tem crédito no mercado.
49:19E aí,
49:19é bom comprador
49:20e bom pagador?
49:21Ótimo!
49:22Compre e paga direitinho.
49:23E vem sempre aqui?
49:24Vem todo dia.
49:25Ela aqui,
49:26quando eu não venho,
49:28ela vem.
49:32Outra história
49:33cheia de conquistas
49:34é a da Rosalina.
49:36Dona de uma felicidade
49:37que não cabe no peito,
49:39ela já realizou
49:40os dois grandes sonhos
49:41de sua vida.
49:42O primeiro foi morar
49:43numa casa
49:44sem ter que dividi-la
49:45com um monte de gente,
49:46como acontece normalmente
49:47nas residências terapêuticas.
49:49Falei com ela,
49:50então eu quero morar sozinha.
49:53aí ela falou,
49:56mas você sabe cozinhar?
49:59Vamos ensinar,
50:00vamos prender primeiro.
50:03Eu só queria conseguir
50:04ficar sozinha.
50:06Quem pensou?
50:07Você.
50:10Eu duvidei de você, Rosalina?
50:11Duvidei.
50:12Mas você mostrou
50:13que podia ir ao contrário, né?
50:19Minha filha
50:20não duvidou de mim, não.
50:21Claro que não.
50:23Minha filha gostou.
50:26Ah, meu amor.
50:27Tânia é a psicóloga
50:28que acompanha a Rosalina.
50:30Depois de conseguir
50:31viabilizar o sonho da casa,
50:32ainda faltava resolver
50:34a questão mais difícil.
50:36Rosalina teve uma filha
50:37no Colônia,
50:38que foi mandada
50:38para adoção.
50:40Sempre em maio,
50:41mês em que a menina nasceu,
50:43ela se isolava
50:43numa tristeza inconsolável.
50:46O desejo era saber
50:46notícias da filha.
50:48Falei meu quarto em casa.
50:50Por quê?
50:52Caso ter.
50:54Caso não vier.
50:55No ano passado,
50:56Tânia descobriu
50:57que a filha de Rosalina,
50:58já adolescente,
51:00estava à procura
51:00da mãe biológica.
51:02Depois de muitas conversas
51:04com a jovem,
51:04com os pais adotivos
51:05e com a Rosalina,
51:07Tânia promoveu
51:08o encontro tão esperado.
51:09A filha
51:10vem e traz as fotos
51:12para mostrar
51:12a sua infância,
51:14como que foi,
51:14que foi uma infância
51:16que a Rosalina
51:16não participou
51:17de nada.
51:19Então,
51:20elas trocam
51:20essa informação.
51:22Rosalina conta
51:23como foi a vida dela
51:24e a filha contando
51:26como que a vida dela
51:28também aconteceu.
51:30Eu fiquei assim,
51:31abraçando ela,
51:32assim,
51:33quando,
51:33quando ela foi embora,
51:35mas eles não tinham falado
51:37comigo que era ela ainda não.
51:40Aí ela me abraçou,
51:42assim?
51:43Aí eu senti.
51:47Era ela.
51:49Abraçei ela,
51:50graças a Deus.
51:52Ela é bonita?
51:55Hoje,
51:56elas mesmas
51:57já marcam o encontro,
51:59saem,
52:00a família
52:01que a adotou
52:03convida a Rosalina
52:04para poder estar
52:05indo lá na casa,
52:08passar o dia das mães,
52:09passar o dia
52:10do aniversário juntas.
52:12O dia do aniversário
52:13da Rosalina,
52:14ela vem aqui
52:15passar o dia com ela.
52:17E você gosta
52:18quando ela vem aqui
52:19te ver?
52:21Gosta?
52:24Rosalina se libertou
52:25de todas as injustiças
52:27que por décadas
52:28aprisionaram
52:29os supostos loucos.
52:30As atrocidades cometidas
52:32para isolar
52:33os transtornos mentais
52:34e sociais
52:34mostraram que
52:36insana
52:36é a sociedade
52:37ao dilacerar
52:38tudo o que é
52:39diferente do padrão.
52:41O que é loucura
52:42é achar
52:43que é possível
52:44ter padrão,
52:45normalidade,
52:46regras muito rígidas.
52:50Tem uma questão
52:51que o Brasil
52:51tem que entender.
52:52O tratamento
52:53e liberdade
52:54é um direito
52:55e é uma conquista
52:56sem volta.
52:59Nós vamos ter
52:59que aprender
52:59a lidar com isso.
53:00A loucura
53:08para mim
53:09é da condição
53:11nossa
53:11enquanto humanos
53:13e nós humanos
53:14alguns mais
53:16outros menos
53:17de vez em quando
53:18descarrilhamos.
53:20As coisas
53:21se desorganizam.
53:22A gente aprende
53:23a liberdade
53:23com a própria loucura.
53:28A vida é boa
53:29muito mais.